Texto de João Luiz Sampaio na Revista CONCERTO de novembro de 2014
A popularidade atingida pela obra de Giacomo Puccini torna difícil imaginar que, em sua época, o compositor esteve longe de ser unanimidade. Mas, mesmo depois de alguns fracassos de público e crítica, seu trabalho acabou reconhecido pelo modo como levou adiante a experiência do drama musical italiano, tornando-se indispensável para a compreensão da história da ópera na passagem do século XIX para o XX.
A relação de Puccini com a música estava definida mesmo antes de seu nascimento. Por dois séculos, seus familiares foram diretores musicais da Catedral de San Martino em Lucca, onde ele nasceu, em 22 de dezembro de 1858. Aos 5 anos, perdeu o pai, e a família passou a ser sustentada com uma pensão oferecida pela cidade. O posto de organista da catedral foi reservado a ele e, com 14 anos, Puccini assumiu a função.
Em 1876, no entanto, Puccini assistiu a uma apresentação de Aida, de Verdi. Um novo mundo de possibilidades artísticas se colocou a sua frente. E, quatro anos depois, ele resolveu se mudar para Milão. Em 1883, formou-se no conservatório, apresentando seu Capriccio sinfonico. E, animado com a repercussão, decidiu inscrever Le villi, sua primeira ópera, em um concurso promovido pela revista Il teatro illustrato.
O júri não gostou. Mas um grupo de amigos – entre eles o compositor Arrigo Boito – levantou dinheiro para promover uma montagem no Teatro dal Verme, em maio de 1884. A ópera foi um enorme sucesso de público, viajou pela Itália e chegou até a Alemanha, onde foi estreada em Hamburgo, com regência de Gustav Mahler.
É verdade que certa parcela da crítica faria ressalvas à partitura. A essa altura, no entanto, Puccini tinha outros problemas em mente: ele começara uma relação com uma moça chamada Elvira, de Lucca – casada com Narisco Gemignani –, e os dois fugiram e se refugiaram em Monza, onde, em 1886, tiveram um filho, Antonio.
A boa acolhida de Le villi levou à assinatura de um contrato com o editor Giulio Ricordi. E logo Puccini começou a trabalhar em Edgar, que, ao estrear em abril de 1889 no Scala de Milão, não agradou nem ao público nem aos especialistas.
A história de Edgar girava em torno de um cavaleiro medieval dividido entre o sacro e o profano. O tema não havia agradado a Puccini. E percebe-se, a partir daí, uma mudança em seu comportamento, mais atento aos temas a serem trabalhados, tornando-se frequentes brigas com seus colaboradores, como já vai ocorrer em Manon Lescaut.
A inspiração surgiu da novela A história do cavaleiro Des Grieux e de Manon Lescaut, do Abade Prévost, que já havia servido de base para Manon, de Massenet, estreada com sucesso em 1884. Ricordi hesitou perante a ideia de uma nova obra a partir do mesmo tema. Mas Puccini não cedeu. “Manon é uma heroína na qual acredito. Por que não pode haver duas óperas sobre Manon? Uma mulher como ela pode ter mais de um amante”, escreveu o compositor.
Puccini estava correto. A ópera, apresentada em fevereiro de 1893, em Turim, foi um enorme sucesso, adorada pelo público e pela crítica – após assisti-la em Londres, Bernard Shaw escreveu que “Puccini me parece, mais que seus rivais, o herdeiro de Verdi”. E deu fôlego para que o compositor levasse adiante um novo projeto: La bohème. A escolha do tema, no entanto, mais uma vez gerou polêmicas, afinal o compositor Ruggero Leoncavallo também trabalhava em uma ópera baseada nas Cenas da vida boêmia, do francês Henri Murger.
A versão de Leoncavallo caiu no esquecimento, e a de Puccini se tornou uma das mais celebradas óperas do repertório. Na época da estreia, porém, em 1896, a crítica mostrou-se decepcionada. “Puccini tem um senso teatral como poucos. Mas esse enorme talento é limitado por algumas contradições de sua índole: ele possuía mais coração do que cérebro”, escreve Lauro Machado Coelho em A ópera italiana após 1870, explicando o porquê de a obra do compositor recusar um sentido de evolução técnica ou estilística.
Por outro lado, nesse momento da carreira, Puccini passa a revelar um cuidado maior com as palavras e com uma linguagem musical capaz de caracterizar seus personagens. Sua ópera seguinte, Tosca, baseada na peça de Victorien Sardou, é exemplo disso. Seus libretistas, na verdade, não acreditavam ser possível transformar em ópera um texto tão violento. Mais uma vez, no entanto, a escolha de Puccini se mostraria correta.
Seu próximo trabalho foi Madama Butterfly, que teve a conclusão adiada por um incidente. Em 25 de fevereiro de 1903, o compositor, a mulher e o filho, durante uma viagem de Lucca para Torre del Lago, onde moravam, envolveram-se em um grave acidente de carro. O processo de recuperação de uma fratura na perna direita foi longo e, durante esse período, ele descobriu também sofrer de diabetes.
Anos depois, um novo episódio agitou a vida do compositor. Puccini era um conhecido mulherengo e, em 1908, Elvira começou a demonstrar ciúmes com relação a Doria Manfredi, jovem funcionária da família. Ao ser expulsa da casa, a moça suicidou-se. Os exames encomendados pelos pais de Dora, contudo, revelaram que ela ainda era virgem – e o que se seguiu foi um processo contra Elvira. Puccini comprometeu-se a pagar uma indenização à família; mas a relação entre ele e a mulher nunca mais foi a mesma.
Foi nesse ambiente que ele trabalhou em La fanciulla del West, que estrearia em 1910, no Metropolitan de Nova York. Do ponto de vista dramático, é uma de suas óperas mais frágeis, mas mantém com suas antecessoras elementos em comum, principalmente a opção por narrar histórias trágicas de amor com protagonista feminina.
Em 1913, Puccini aceitou o convite de um teatro austríaco para escrever uma obra nos moldes de opereta vienense. A eclosão da Primeira Guerra, no entanto, fez com que La rondine estreasse apenas em 1917, em Monte Carlo. O compositor acabou sendo criticado pela opção de manter o contrato com uma nação inimiga, o que levaria inclusive a desentendimentos com um antigo e querido amigo, o maestro Arturo Toscanini. Seus biógrafos, no entanto, assumem que a decisão foi apenas mais um exemplo da falta de senso – e de interesse – político de Puccini.
Com Il tritico (composto por Gianni Schicchi, Suor Angelica e Il tabarro), o compositor começa a refinar ainda mais seu senso teatral, sacrificando a beleza melódica em função do que ele chamava de “verdade dramática”. Essa guinada estética seria ainda mais contundente em Turandot. Puccini morreria devido a um câncer, em novembro de 1924, antes de terminá-la – e as cenas finais foram completadas por Franco Alfano.
Apenas nos anos 1950 a obra de Puccini passou por um verdadeiro processo de reavaliação, capaz de entender sua contribuição ao gênero, como definiu um de seus principais biógrafos, Mosco Carner. “Um dos sinais do talento do artista é saber criar, com sua fantasia, um mundo que somos forçados a reconhecer como particularmente seu. Isso não é necessariamente sinônimo de grandeza, mas exige um alto grau de personalidade, um dos dons criativos mais preciosos.”
Linha do tempo
1858
O compositor nasce no dia 22 de dezembro, em Lucca, na Toscana
1864
Morre o pai do compositor; a família passa a ser mantida por uma pensão da cidade
1876
Durante uma viagem a Pisa, assiste a Aida, de Verdi, e começa a se dedicar à composição
1880
Deixa Lucca em direção a Milão, para estudar no conservatório, onde se forma em 1883
1884
Estreia, em Milão, sua primeira ópera, Le villi; resolve fugir com Elvira, com quem mais tarde se casaria
1891
O casal se instala em Torre del Lago, onde viveria até o final da vida de Puccini
1893
Manon Lescaut, apresentada em Turim, torna-se seu primeiro grande sucesso de público e crítica
1896
Estreia La bohème, dando continuidade a uma série de obras com protagonistas femininas que teria ainda Tosca (1899), Madama Butterfly (1903) e La fanciulla del West (1910)
1908
Uma crise de ciúmes de Elvira leva ao suicídio da jovem Doria Manfredi
1924
O compositor morre durante o tratamento para um câncer de garganta, deixando incompleta a ópera Turandot; é enterrado em Torre del Lago
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