Texto de Leonardo Martinelli na Revista CONCERTO de novembro de 2009
Estrela maior da história da música brasileira, o conjunto da obra de Heitor Villa-Lobos constitui um dos grandes marcos do repertório clássico do século XX, sendo sua música presença obrigatória no repertório de orquestras, grupos de câmara, instrumentistas e cantores mundo afora. Graças a diferentes pesquisas realizadas nos últimos anos, hoje é possível traçar um perfil biográfico que nos permite refazer os passos percorridos por Villa-Lobos ao longo de seus 72 anos de vida.
Por muito tempo não se soube de forma precisa a data de nascimento do compositor, e somente pesquisas realizadas nos arquivos batismais da Igreja de São José, no Rio de Janeiro, finalmente apontaram o 5 de março de 1887. Na época de seu nascimento, a família Villa-Lobos residia na Rua Ipiranga, no bairro carioca das Laranjeiras, sendo Heitor filho de Noêmia Umbelina Santos Monteiro e Raul Villa-Lobos, que geraram ainda outros sete filhos além de Tuhu (apelido pelo qual Heitor era tratado na intimidade familiar). Apesar das origens cariocas, ainda muito cedo se viu longe da então capital da República por conta da perseguição política sofrida por seu pai – um notório crítico do então presidente Floriano Peixoto – , obrigando a família a passar um tempo no interior do estado do Rio e nas cidades mineiras de Bicas e Cataguazes, onde se acredita que Heitor teve seus primeiros contatos com a música popular rural do país.
Aliás, foi seu pai o responsável pela introdução do pequeno Tuhu ao universo da música. Funcionário da Biblioteca Nacional e intelectual ativo, foi Raul quem ministrou as primeiras lições de violoncelo e, posteriormente, de clarinete ao jovem Villa, de quem ainda exigia com rigor o aprendizado dos estilos e da teoria da música. Já de volta ao Rio, outra influência notória nesses anos de formação foi a convivência com sua tia Zizinha, pianista que tinha uma peculiar predileção pelo Cravo bem temperado de J.S. Bach, que anos mais tarde seria a pedra angular de uma das principais obras de Villa-Lobos, as Bachianas brasileiras.
Em 1899 Raul Villa-Lobos morre deixando órfão o pequeno Heitor — então com apenas doze anos de idade —, que é obrigado a profissionalizar-se, passando a tocar violoncelo em pequenas orquestras para apresentações em teatros, em sessões de cinema mudo, cafés e confeitarias do Rio belle époque. Ë nesse momento que ele entra em estreito contato com os mais famosos chorões da cidade e passa a aprimorar-se em instrumentos como o saxofone e o violão, que seu pai sempre o impediu de estudar por conta da fama de "instrumento de malandros" vigente na época.
Porém, nem a efervescente vida cultural do Rio foi capaz de matar a sede por novas experiências do jovem Villa, que aos 18 anos decide empreender uma viagem pelo país. Entre 1905 e 1912 realiza diversas excursões rumo ao norte do Brasil (em parte financiadas pela venda da valiosa biblioteca herdada do pai), visitando os estados do Espírito Santo, Bahia e Pernambuco, tendo sido contratado no Recife como violoncelista por uma companhia de operetas com a qual, supostamente, teria viajado pelo Pará e o Amazonas. No ínterim entre 1908 e 1910, Villa realiza uma longa estada na cidade de Paranaguá (PR), o que lhe serviu de base para viagens aos estados do Sul. Foi ao longo desse período que o uso de elementos folclóricos passa a ser presença constante em suas composições.
Munido com uma bagagem de cultura musical erudita e popular singular para os padrões da época, quando Villa volta a morar no Rio, em 1913, ele começa a dar os passos decisivos para uma verdadeira guinada na música clássica de então. Se por um lado nos bares e bailes cariocas já se respirava o ar renovado de uma música popular viva e criativa, por outro nas salas de concertos o gosto pelo estilo romântico era algo forte que impedia o florescimento de uma nova geração. Tomando como referência os desenvolvimentos que já ocorriam com seus contemporâneos europeus, foi nadando contra a maré que Villa empreendeu seu ambicioso projeto de desenvolver uma música moderna à brasileira. Em meio a muitas polêmicas e resistências por parte do público e, não raro, dos próprios músicos, o compositor adentra a década de 1920 como o principal nome do modernismo musical brasileiro, tendo sido a principal atração musical da Semana de Arte Moderna, ocorrida em fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo.
Foi já com esse status de criador modernista que Villa-Lobos realiza em 1923 a primeira viagem de promoção de sua obra em Paris, auxiliado em parte pelo Estado e pela abastada família Penteado. Porém, com o fim do dinheiro, é obrigado a voltar ao Brasil para somente em 1927 regressar à Cidade Luz, agora sob o mecenato da família Guinle. Os anos parisienses foram, por diversos motivos, fundamentais para o compositor. Primeiramente, porque seu objetivo maior fora alcançado, pois somente a partir da execução de sua obra na França é que seu nome passou a ser difundido internacionalmente, feito realizado anteriormente por apenas outro brasileiro, Carlos Gomes. Além disso, apesar de Villa ter ido a Paris "não para aprender, mas sim para mostrar" (nas suas próprias palavras), não há dúvida de que o contato com a vanguarda local influenciou de forma decisiva seu estilo musical. Finalmente, foi durante esses anos que o folclore villalobiano ganhou corpo, pois parte de sua estratégia de propaganda consistia em inventar histórias de cativeiros em tribos indígenas e participações em rituais canibais.
Em 1930, atendendo a um chamado para uma série de concertos, Villa volta em definitivo ao Brasil. Ao assumir a Superintendência de Educação Musical e Artística (Sema) tem a oportunidade, então, de coordenar a inserção da educação musical nas escolas do estado de São Paulo e, posteriormente, em todo pais: Trabalhou intensamente nesse projeto — que tinha como base o canto coral a partir de músicas folclóricas (então designado canto orfeônico) —, ao mesmo tempo em que iniciava sua controversa relação com o Estado Novo e a ditadura de Getúlio Vargas. Nessa época, Villa dedicava-se de forma igualmente fervorosa a suas composições, que passaram a repercutir de forma especialmente generosa nos Estados Unidos, em parte também como efeito do processo da "política da boa vizinhança".
Com livre trânsito nas altas esferas da política, Villa-Lobos fundou em 1945 a Academia Brasileira de Música, à qual deixou em testamento todos os direitos autorais de suas obras. Foi gozando em vida o reconhecimento como um dos mais talentosos músicos de seu tempo que Heitor Villa-Lobos veio a falecer, em 17 de novembro de 1959, deixando para o Brasil um de nossos mais significativos patrimônios culturais.