Texto de Camila Fresca na Revista CONCERTO de março de 2014
Filho de pais portugueses de origem cigana, César Guerra-Peixe nasceu em Petrópolis, no dia 18 de março de 1914, caçula de dez irmãos. Revelando talento incomum já na infância, Guerra-Peixe tocava violão, violino e piano desde os 7 anos de idade. Mas o instrumento que estudou seriamente foi o violino. Guerra foi aluno de Paulina d’Ambrósio no Instituto Nacional de Música (INM), no Rio de Janeiro, na década de 1930.
Naquela época, já trabalhava como músico de orquestras de salão e dava os primeiros passos como arranjador. Sua intimidade com os instrumentos de cordas, aliás, fica patente em sua escrita para o violino. Isso somado a seus estudos de música dodecafônica, suas pesquisas sobre o folclore brasileiro e sua experiência como arranjador e orquestrador dão o tom geral de sua obra.
A obra de Guerra-Peixe se notabilizou por duas fases marcantes: uma dodecafônica e outra nacionalista. Após terminar os estudos no INM, ele decidiu se aperfeiçoar na composição, matriculando-se no Conservatório Brasileiro de Música. Em 1944, ao terminar o curso, uma sinfonia sua foi apresentada pela Rádio Tupi, revelando um músico de sólido métier. Naquele momento, aos 30 anos de idade, foi procurar Hans-Joachim Koellreutter para se aprofundar em outras técnicas de composição. Sua criação, que até então era influenciada pela música tradicional e urbana brasileira, tomou novos rumos e enveredou pela técnica dodecafônica. Entre 1944 e 1949, Guerra-Peixe escreveu quase cinquenta peças dentro dessa linguagem, embora sempre com certa liberdade e procurando, por vezes, fundir a técnica dos doze tons com a música nacional. Sua Sinfonia nº 1, de 1946, é uma obra dodecafônica, estreada pela orquestra da BBC, em Londres, sob regência de Maurice Miles.
Em 1949, Guerra-Peixe abandona definitivamente o dodecafonismo e abraça o nacionalismo. Segundo ele, a influência definitiva para essa tomada de posição foi a leitura dos textos de Mário de Andrade, que conclamavam os compositores a colaborar para a criação de uma música erudita de caráter nacional. Segundo a pesquisadora Ana Cláudia de Assis, essa mudança de orientação pode ser atribuída à insatisfação do compositor com o valor social de sua música dodecafônica, bem como à convivência com diferentes manifestações musicais nordestinas durante o período em que trabalhou na Rádio Nacional do Comércio de Recife, entre 1949 e 1952.
Certa vez, em entrevista a Luiz Paulo Horta, Guerra-Peixe declarou: “Depois do dodecafonismo, fiquei por um tempo imbuído de alguns conceitos errôneos. Koellreutter dizia: ‘Quando uma música agrada, é porque alguma coisa não está no lugar’. A música tinha que desagradar. A gente também compunha sem pensar no problema dos instrumentos; eu compus, o diabo que toque. Tenho músicas que não consigo tocar. Hoje penso diferente. A música pode ser difícil, mas tem de ser viável. E a comunicação foi um negócio que sempre me interessou”.
Sempre compondo, Guerra-Peixe teve seu Noneto estreado em Zurique, na Suíça, pelo regente alemão Hermann Scherchen (1891-1966). Impressionado com o jovem compositor, Scherchen o convidou para morar em sua casa, em Zurique, a fim de estudar regência. Guerra preferiu permanecer no Brasil e aceitar a proposta no Recife, com o intuito de conhecer melhor o folclore nordestino. Durante três anos, desenvolveu intenso trabalho, recolhendo maracatus, catimbós e xangôs em cidades pernambucanas. Parte dessas pesquisas foi publicada no livro Maracatus do Recife, editado em 1955. Este mergulho na cultura nordestina fez dele “um sulista nordestinizado”, nas palavras do sociólogo Gilberto Freyre. Mais tarde, já morando em São Paulo, Guerra-Peixe realizou trabalho semelhante, visitando o interior do estado e coletando jongos, sambas, folias-de-reis etc.
Para o jornalista Luiz Paulo Horta, Guerra-Peixe foi o nosso Bartók, o compositor que se debruçou seriamente sobre nossas tradições populares e a partir delas buscou estabelecer uma música de características nacionais. Se de um lado dedicava-se à música tradicional, de outro continuava seu trabalho de composição, o que incluía também muitas trilhas para cinema. A música escrita para o filme Canto do mar (1953), de Alberto Cavalcanti, por exemplo, recebeu diversos prêmios. Em 1962, Guerra-Peixe mudou-se de São Paulo para o Rio de Janeiro, onde integrou a Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC como violinista, ao mesmo tempo que lecionava nos seminários de música da Pró-Arte. E havia ainda sua atuação como arranjador de música popular, para orquestras de rádio e TV. Guerra-Peixe chegou a escrever arranjos para canções de Chico Buarque, Luiz Gonzaga e Tom Jobim. Em 1968, criou a Escola de Música Popular do MIS-RJ.
A prática de arranjador fez também que ele transcrevesse suas peças originais para várias formações diferentes. Quatro coisas, por exemplo, foi escrita em 1987 para harmônica de boca e piano. Mais tarde, foi transcrita para flauta e piano ou violino e piano. Posteriormente, a parte de piano foi reelaborada ainda para orquestra de cordas, e a do solista, para qualquer outro instrumento solo.
A partir da década de 1970, Guerra-Peixe passou a viajar com mais frequência pelo país, trabalhando como compositor, regente ou violinista e quase sempre organizando concertos apenas com obras de autores brasileiros. A retirada da laguna, peça sinfônica que retrata um episódio da Guerra do Paraguai, foi escrita em 1971. E, pouco depois, o compositor criou aquela que é provavelmente sua obra mais conhecida. Mourão foi feita para o Movimento Armorial e lançada originalmente no LP de 1974, “Do romance ao galope nordestino”, do Quinteto Armorial. Segundo o compositor, trata-se de uma peça feita no estilo da cantoria nordestina. Mourão tornou-se uma peça bastante conhecida desde então, sendo regravada diversas vezes e em diferentes formações.
Entre 1970 e 1980, Guerra-Peixe, já um nome consagrado, dedicou-se intensamente à docência. Deu aulas no Centro de Estudos Musicais do Rio de Janeiro, na UFMG, na USP e na UFRJ, entre outras instituições. Entre seus alunos encontram-se nomes de destaque de nossa cena musical, como José Maria Neves, Jorge Antunes, Guilherme Bauer e Clóvis Pereira, além de arranjadores e compositores populares, como Paulo Moura, Capiba, Sivuca, Baden Powell e Roberto Menescal. Em 1993, ano de sua morte, recebeu o título de maior compositor brasileiro vivo.
A produção de Guerra-Peixe como compositor revela um artista de fôlego e pleno domínio de linguagem. Além de meia centena de obras orquestrais – nas quais se incluem o Concertino para violino, o Pequeno concerto para piano, duas sinfonias, suítes e o Tributo a Portinari –, há uma volumosa produção de câmara, com trios, quartetos, quintetos, duos, um octeto e um noneto, além de uma extensa coleção de música instrumental solo para piano, violino, flauta, clarinete e viola. Completam sua produção dezenas de canções com piano e obras corais. A maioria das obras é nitidamente inspirada nas tradições populares brasileiras e, ao mesmo tempo, muito construída na tradição da música dita “clássica”. Suas composições se comunicam facilmente com os ouvintes, cativando já nas primeiras audições, e mereceriam estar com mais frequência em nossas salas de concerto.
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