Por Beatriz Hack [É bailarina, professora, ensaiadora e coreógrafa. Atualmente é Ballet Mistress na São Paulo Companhia de Dança, onde dançou por mais de 10 anos. É pesquisadora de movimento e estudante de jornalismo.]
A versão de Alexandre Dumas (1802-1870) de um conto escrito por E.T.A. Hoffmann, “The Nutcracker and the Mouse King” foi a grande inspiração para Marius Petipa (1818-1910) e Lev Ivanov (1834-1901) criarem o que conhecemos hoje como “O quebra-nozes”. E aqui estamos, 131 anos após a sua estreia no Teatro Mariinski, em São Petersburgo, para falar sobre tradição. Nos dias de hoje, o que pode significar criar ou remontar uma coreografia a partir das partituras de Pyotr Ilyich Tchaikovsky? Essa história, que é contada há tantos anos, não sai de moda? Isso acontece por conta da temática natalina? A tradição envolvida em um grande clássico permite flexibilidade e novas leituras?
Acredita-se que muita gente – mesmo aqueles que nunca assistiram à obra completa – tenham ideia da temática retratada. No primeiro ato, durante a festa de Natal na casa da família Stahlbaum, as crianças esperam os presentes de Drosselmeyer, o padrinho de Clara, e a ela é dado o famoso boneco de madeira quebra-nozes. Os convidados vão embora e Clara adormece. O temido Rei Rato aparece com seu exército de ratos preparados para a batalha com os soldados. O ato se encerra com a famosa dança dos flocos de neve. Na segunda parte, em um universo imaginário, bastante conhecido como O reino dos doces, uma fada nos apresenta todo o seu mundo encantado com danças que simbolizam chá, café, chocolate, marzipan e representam culturas de diferentes países.
Com uma estreia sem sucesso, a obra se tornou querida pelo público anos depois. Tchaikovsky não pode receber em vida o reconhecimento que essa grande partitura merece. Porém, hoje encontramos inúmeras versões deste conto pelo mundo.
Em São Paulo, Márcia Haydeé, uma grande artista que dispensa apresentações, criou sua própria versão para a São Paulo Companhia de Dança (SPCD) em 2022, a partir do convite e ideia de Inês Bogéa, diretora artística da companhia. Em sua releitura, ela nos transporta para a sua própria infância. O padrinho Drosselmeyer representa o seu avô. Como ela mesma disse, “o mágico, o inventor, o gênio, sempre lhe contava histórias e lhe mostrava um mundo de possibilidades”.
As crianças na versão de Haydeé não têm os nomes tradicionais Clara (ou Marie em algumas versões norte-americanas) e Fritz, e sim o nome dos próprios bailarinos que interpretam esses personagens, um paralelo, que podemos observar na versão do Royal Swedish Ballet (RSB), em Estocolmo, dançada pela bailarina brasileira Luiza Lopes , que é primeira bailarina da companhia. Na obra, que foi criada por Pär Isberg em 1995, inspirada em um conto infantil sueco, Clara e Fritz também têm outros nomes, “Peter e Lotta”. Esses personagens são protagonistas em uma das obras de Elsa Leskow (1874-1953) chamada “O natal de Peter e Lotta”. Os irmãos são órfãos e foram criados pela ajudante que trabalha na casa da família Stahlbaum. Husan, a ajudante, no segundo ato se transforma na “Fada açucarada”, como uma fada madrinha para as crianças, que na versão de Haydeé, aparece como uma estrela. “Vega”, a mais brilhante da constelação, dança sob um céu repleto de estrelas e aglomerados, nos transportando ao seu Mundo dos sonhos.
A partir da releitura de dois coreógrafos, Márcia e Pär, de distintas gerações, podemos perceber que a tradição não está ligada à rigidez, e sim ao respeito ao que foi criado e de como isso pode se refletir de forma autêntica em nossa realidade. Cristiana de Souza, atual coordenadora artística da Escola de Dança de São Paulo (Edasp), ligada à Fundação Theatro Municipal de São Paulo, revela uma linha de pensamento similar à de Haydeé e Isberg. “Acredito firmemente na possibilidade de reinventar produções como ‘O quebra-nozes’, mesmo reconhecendo a importância de honrar a tradição. Para mim, a verdadeira homenagem à tradição não reside na preservação estática, mas sim na transformação dinâmica ao longo do tempo, trazendo-a para o presente de maneiras significativas”, fala. “Em nosso contexto brasileiro, onde a tradição de ‘O quebra-nozes’ não é nativa, vejo a reinvenção como uma oportunidade de oferecer uma perspectiva autêntica e conectada à nossa identidade cultural”, completa.
E foi exatamente isso que fez Márcia em sua versão para a SPCD, trazendo essa história para mais perto de nossas origens. Um exemplo disso é o Trepak, a famosa dança russa do segundo ato, transformada ali em uma roda de capoeira. Para Dany Bittencourt, atual diretora artística da Cisne Negro Companhia de Dança, que assina a coreografia da 40ª edição de “O quebra-nozes”, a obra representa a tradição. “O conto de Natal é esperado ansiosamente nesta época do ano pelo público. Recebemos meses antes perguntas sobre o início da venda de ingressos”, conta Dany.
A linguagem de Balanchine, livre e cheia de desafios técnicos, se vê na velocidade dos Flocos de neve, no brilhantismo da Valsa das flores e na magia no Pas de deux principal. São cenas de tirar o fôlego
George Balanchine (1904-1983) criou uma versão com tradição e inovação desta obra para o New York City Ballet, em 1954, que é sucesso de público até hoje. Ao todo são aproximadamente 90 bailarinos, 62 músicos, 40 ajudantes de palco e mais de 125 crianças. A linguagem de Balanchine, livre e cheia de desafios técnicos, se vê na velocidade dos Flocos de neve, no brilhantismo da Valsa das flores e na magia no Pas de deux principal. São cenas de tirar o fôlego.
Outro grande coreógrafo do século XX, Rudolf Nureyev (1938-1993), conhecido pelos bailarinos por incluir combinações de passos complexas, muitas vezes feitas para ambos os lados, tem uma versão de ‘O quebra-nozes’ absolutamente vigorosa, como todas as suas grandes montagens. A coreografia teve sua estreia no Royal Swedish Ballet em 1967, mas sua versão final foi criada para o Ballet de L’Ópera de Paris, em 1985. Os convidados do primeiro ato usam máscaras gigantes muito expressivas contracenando com Clara. Drosselmeyer e o príncipe são a mesma pessoa, representando o homem ideal sonhado pela protagonista.
E se todas as versões citadas até aqui são adaptações clássicas, como seria uma releitura mais contemporânea desta obra? Luiz Fernando Bongiovanni, diretor do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, dirige este ano o conto de Natal para o Centro Cultural Teatro Guaíra. Com coreografia assinada pelo próprio diretor em colaboração com os bailarinos da casa, o espetáculo envolve quatro corpos artísticos – Balé Teatro Guaíra, Escola de Dança, G2 Cia. de Dança e Orquestra Sinfônica do Paraná regida por Roberto Tibiriçá.
Quando fez parte do elenco de bailarinos da sueca Cullberg Ballet, Bongiovanni teve a oportunidade de vivenciar no dia a dia uma diferente “roupagem”, que Mats Ek colocava nas obras originalmente clássicas. Ek, que foi coreógrafo e diretor da companhia por doze anos, põe o ser humano e seus dilemas no centro da dramaturgia e a versão de Bongiovanni não é muito diferente. A narrativa está centrada na personagem Clara e no seu momento de vida: a passagem da infância para a adolescência. Ele traz também uma figura feminina para o personagem Drosselmeyer. “A madrinha é o grande catalisador de uma série de experiências psíquicas que a personagem principal vai ter. Essa madrinha é como se fosse um xamã que faz Clara entrar em contato com seus próprios desejos. O grande professor de Clara nesse momento da vida é o amor”, fala. “A tradição é constantemente revisitada. Ela não pode ser sacramentada e fossilizada. Entretanto, não acredito no cancelamento de uma outra cultura, que de alguma forma também é nossa, seja ela europeia, africana, ameríndia. Estamos recontando essa história”, completa o coreógrafo.
No segundo ato, basicamente em todas as versões, temos as cenas que trazem a relação da Espanha com o chocolate, da Arábia com o café, da China com o chá, a bengala doce da Rússia, além do marzipan e do gengibre. Isso tudo está conectado com o Reino dos doces e a Fada açucarada. Normalmente o que vemos em cena, através da linguagem corporal e da escolha do figurino, é construído pelo imaginário popular em relação à cultura de cada país.
Mas o que é estereótipo e o que é tradição? Estereótipo é um tipo de padrão que a sociedade constrói. É uma ideia preconcebida que cria rótulos e padrões muitas vezes de forma preconceituosa. Tradição é a transmissão de costumes e memórias para toda uma comunidade. Faz parte da cultura de um determinado lugar.
A releitura de uma obra permite que o coreógrafo converse com o seu tempo e faça aquilo que é uma tradição ganhar mais sentido. Márcia Haydeé, que tem a curiosidade de uma criança e a maturidade e experiência dignas de uma carreira brilhante, criou um solo em sua versão da cena que representa o café, a famosa dança árabe. Um homem negro, vestindo uma comprida saia branca, nos conecta com as nossas raízes, trazendo a tradição sem estereótipo.
Na versão da Edasp, criada pelos docentes da instituição sob coordenação de Cristiana Souza, também podemos ver uma atenção com a quebra de estereótipos. “Um dos objetivos foi criar uma narrativa que promova a compreensão, aceitação e celebração da diversidade, contribuindo para a construção de uma sociedade mais igualitária e inclusiva. Ao trazer protagonistas negros, por exemplo, o enredo pode se desdobrar para abordar experiências culturais específicas, desafios e celebrações. A inclusão de personagens de diferentes origens étnicas pode enriquecer a narrativa, proporcionando uma perspectiva mais abrangente e reflexiva sobre a diversidade humana”, conta Cristiana.
Quando chega o final do segundo ato, Clara está de volta a sua casa e percebe que o que viveu não passou de um sonho. Porém, em algumas versões, como na de Balanchine, nunca se vê Clara despertando do seu sonho. Entende-se que ele foi real, como no conto de Hoffmann.
Quando você conta uma história que pertence ao inconsciente coletivo, você tem uma base com a qual você dialoga. Já existe algo que vai ser vivificado, por isso o engajamento é mais presente. É um processo de reconhecimento com o público
Assim, nas palavras de Bongiovanni, entendemos o motivo pelo qual ‘O quebra-nozes’, com toda a sua diversidade, é sempre um sucesso: “Quando você conta uma história que pertence ao inconsciente coletivo, você tem uma base com a qual você dialoga. Já existe algo que vai ser vivificado, por isso o engajamento é mais presente. É um processo de reconhecimento com o público”.
Para sentir que não existem limites para a originalidade, mesmo nos grandes clássicos, vale procurar pela versão de Mathew Bourne de “O quebra-nozes” e assim fazer a sua própria reflexão: tradição x originalidade?
PRÓXIMAS APRESENTAÇÕES
“O quebra-nozes”, com direção de Luiz Fernando Bongiovanni
Teatro Guaíra
Dias 14, 15, 16, 17 e 19 de dezembro de 2023 – Guairão
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“O quebra-nozes”, direção de Dany Bittencourt
Cisne Negro Cia de Dança
De 12 a 19 de dezembro de 2023 – Auditório Ibirapuera
Dias 22 e 23 de dezembro de 2023 – Teatro Santander
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“The Nutcracker”, de George Balanchine
New York City Ballet
De 24 de novembro a 31 de dezembro de 2023 – David H. Koch Theater
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“The Nutcracker”, de Rudolf Nureyev
Ballet L’Opera de Paris
De 8 de dezembro de 2023 a 1º de janeiro de 2024 – Opéra Bastille
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“The Nutcracker”, de Pär Isberg
Royal Swedish Ballet
De 1º de dezembro de 2023 a 20 de janeiro de 2024 – Kungliga Operan
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