“A Experimental de Repertório é como um hospital escola para músicos”, diz Jamil Maluf

por João Luiz Sampaio 03/04/2020

Nos 30 anos da orquestra, completados esta semana, o maestro relembra sua trajetória, defende sua transferência para o Theatro Municipal de São Paulo e discute projeto da Fundação TMSP, criada durante seu período como diretor artístico do teatro.

No dia 30 de março de 1990, um decreto municipal criava a Orquestra Experimental de Repertório (OER). O objetivo era dar a São Paulo uma orquestra profissionalizante, para jovens músicos que já se preparavam para o mercado profissional.

“Eu brinco que ela é o Hospital Escola do estudante de música, onde ele vai fazer a residência”, diz o maestro Jamil Maluf, criador do projeto e seu diretor por 27 desses 30 anos – entre 2013 e 2015, durante a gestão John Neschling no Theatro Municipal de São Paulo, o grupo foi comandado pelo maestro Carlos Moreno.

A OER logo estabeleceu-se no cenário musical de São Paulo, em especial pelas participações na temporada lírica da cidade. Mais do que isso: em 2012, um levantamento interno mostrou que mais de 600 músicos que passaram pela Experimental integravam orquestras profissionais do país.

Não foi, porém, uma história sem percalços. O grupo sempre enfrentou o problema de uma falta de sede – chegou a ensaiar durante anos no estacionamento da polícia atrás da Câmara Municipal. Nos últimos anos, o debate tem girado em torno da definição do grupo como corpo da Escola Municipal de Música e não do Theatro Municipal.

Maluf entende a orquestra como corpo estável do teatro, como afirma nessa entrevista, na qual falou também da história do grupo, de seus anos como diretor artístico do Municipal (entre 2005 e 2009) e de temas atuais, como o modelo de gestão: ele defende a fundação, mas propõe sua completa reestruturação.

“A fundação que imaginávamos tinha uma cara mais compacta, previa um diálogo interno muito maior. Tanto que, quando vi que o projeto aprovado era o oposto, fui ao secretário Carlos Augusto Calil e pedi para sair”, conta.

Leia a seguir a entrevista que o maestro Jamil Maluf concedeu ao Site CONCERTO.

Jamil Maluf [Divulgação]
Jamil Maluf [Divulgação]

Como surgiu o projeto de criação da Orquestra Experimental de Repertório?
Quando cheguei da Alemanha, consegui meu primeiro emprego no Brasil no Conservatório de Tatuí, mas em 1980 fui chamado para o Theatro Municipal de São Paulo, para trabalhar com a Orquestra Sinfônica Jovem. Era uma orquestra com 80 músicos e apenas dois funcionários, a estrutura era precária. Fizemos um trabalho razoável, mas com aquele formato não tínhamos como ir adiante. Por estarmos dentro da estrutura do Theatro Municipal, poderíamos oferecer uma formação completa, ópera, balé, concertos. Mas não tínhamos músicos suficientes ou estrutura capaz para isso. Ali surgiu a ideia de transformar a Jovem em uma orquestra de formação da Escola Municipal de Música. E de criar a Orquestra Experimental de Repertório, uma orquestra profissionalizante. Nossos músicos, na prefeitura, recebem o nome de instrumentistas pré-profissionais. Não é uma orquestra jovem, é uma orquestra preparatória, que quer oferecer uma gama mais ampla para estudantes e uma estrutura melhor. Lembro que o nome “experimental” provocou rebuliço danado na época. As pessoas não sabiam o que ela seria. O termo se referia à experimentação do jovem músico, à experimentação por meio do trabalho com nossos compositores e à experimentação intrínseca à união entre o som acústico e o som eletroacústico. Estreamos, por exemplo, o concerto para computador e orquestra de Rodolfo Coelho de Souza. 

E que lembrança você tem dos primeiros anos de trabalho com o grupo?
A pergunta que eu me fazia sempre era: essa orquestra é necessária? Você não joga fora verba pública. Onde a orquestra iria entrar no cenário musical? A resposta tem a ver com o que penso sobre a formação de um músico. O talento é inato, não se ensina. Mas a orquestra dá experiência. Vejo a Experimental como uma Hospital Escola do estudante de música. Nela, ele vai adquirir experiência para sair depois e ocupar um posto profissional de instrumentista. E precisamos oferecer experiência de qualidade. Faltava lá atrás uma orquestra com essa configuração. Outra coisa. Um pouco antes de criar a OER, eu passei um mês nos Estados Unidos e conheci a Civic Orchestra de Chicago, onde passei um período. Ela é diferente da Experimental, mas tem algo em comum: em cada naipe havia um músico profissional, responsável pela relação dos músicos com o maestro. Isso foi importante para estruturar o grupo, ainda que tenha sido alvo de críticas por conta disso desde o começo.

E como foi se consolidando a ideia de repertório da orquestra?
Toda programação reflete o maestro, suas qualidades e defeitos. Mas sempre tentei pensar primeiro no público. Nós não podíamos tocar só o que me sensibilizava. O critério era qualidade e falta de qualidade. Sempre tive muito claro o fato de que a programação não era para mim. Eu tenho que me informar. Procurar saber o máximo possível, sair de um ambiente paroquial, de grupinhos. A programação precisaria refletir o que se passava no mundo da música. Se não fomos para os Estados Unidos ou a Europa, não foi por falta de convites, mas pela falta de apoio e de dinheiro.

“As bolsas dos músicos e os salários da equipe são pagos pela Fundação Theatro Municipal. Mas a verba de programação vem da organização social que administra o teatro. Esse dilema tem que acabar.”

Você defende a Orquestra Experimental de Repertório como um corpo artístico do Theatro Municipal e não da Escola Municipal de Música. Você acha que houve, da parte do teatro, a mesma compreensão sobre a natureza do grupo?
A resposta é muito clara: não. A Orquestra Experimental de Repertório não está ligada a lugar nenhum estruturalmente. Ela sempre ficou flutuando. E até hoje está. Essa é a última grande batalha que quero vencer com a orquestra, fazê-la ser transferida para o Theatro Municipal. Ela é um grupo profissionalizante do teatro. E não pode ficar com um pé em cada canoa. As bolsas dos músicos e os salários da equipe são pagos pela Fundação Theatro Municipal. Mas a verba de programação vem da organização social que administra o teatro. Ou seja, um garante a existência, mas não a programação; e o outro garante a programação, mas não a existência. Esse dilema tem que acabar.

Por que a Experimental de Repertório deveria estar ligada ao teatro e não à Escola Municipal de Música? Qual a diferença dela para a Sinfônica Jovem?
Ela tem a ver com o momento do músico. Na Experimental, ele está quase pronto para saltar para a profissão, está no momento em que vai começar a exercer a profissão. Fizemos um levantamento, pouco antes de John Neschling me tirar do teatro, e havia 600 músicos da orquestra em grupos profissionais em todo o país, como a própria Sinfônica Municipal ou a Osesp. O músico, aqui, não está mais no momento da formação, já está sendo treinado intensamente para ocupar um posto profissional, com um desenvolvimento elevado. É por isso também que sempre defendo a aproximação com a Sinfônica Municipal, que é importante de todos os lados. 

Você falou agora há pouco do papel do monitor na orquestra, chamando atenção para as críticas que recebeu pela presença dos profissionais no grupo. Tendo em vista que os músicos da orquestra já estão se preparando para o mercado profissional, por que eles são necessários? Qual seria exatamente a função deles?
O monitor está ali para esmiuçar todas as questões que vão aparecendo durante a preparação da programação. Eu como maestro não posso ficar esmiuçando os detalhes de cada naipe, e o monitor pode. O maestro deve pensar no conjunto, fazer música em conjunto. Mas eu gostaria de ressaltar também que no momento os monitores estão também dando assistência aos alunos da Sinfônica Jovem. Fundamos o CEORF (Centro experimental de orquestras de formação), com eles trabalhando com outros grupos.

O cenário hoje é diferente daquele em que nasceu a Experimental, há em todo o país importantes orquestras jovens. Aqui em São Paulo podemos falar da excelência da Orquestra Jovem do Estado ou da Sinfônica Heliópolis. Qual o lugar hoje da Experimental?
A diferença da Experimental tem a ver com o momento de vida do músico, insisto nisso. No caso da OER, existe a possibilidade de um repertório variado, com ópera e balé além dos concertos, por estarmos ligado ao Municipal. Recentemente, temos feito menos ópera do que eu gostaria. Antes da minha saída da orquestra, fazíamos uma por ano, mas uma que sempre mexia com o público. Era o que podíamos oferecer. Mas, se tenho um fosso à minha disposição, posso fazer ópera, posso tocar com o Balé da Cidade de São Paulo. 

A ópera foi um ponto importante na história da orquestra nesses trinta anos. Há algum espetáculo que você considera particularmente marcante?
Eu gostaria de citar dois. O primeiro foi a ópera João e Maria, de Humperdinck, porque foi a primeira vez na história do Theatro Municipal em que se pensou em um espetáculo para o público infantil. Era uma ópera símbolo no gênero e o espetáculo foi feito com o teatro negro, misturando linguagens. Ele teve quatro temporadas em São Paulo, uma no Rio de Janeiro, uma em Manaus e uma em Belém, o que foi inédito. O segundo foi a produção de Os contos de Hoffmann, de Offenbach. A Experimental conseguiu fazer naquela época a primeira montagem na América Latina da versão de Michael Kaye, moderna, atualizada, que tinha acabado de sair. Fizemos o mesmo com o Barbeiro de Sevilha, que apresentamos aqui pela primeira vez na versão de Alberto Zedda. Mesmo quando encaramos um repertório tradicional, o fizemos correndo riscos, sendo autênticos com nossa proposta, perseguindo e oferecendo ideias novas.

Ao longo desses trinta anos, você também passou um período na direção artística do Theatro Municipal de São Paulo. Como resume essa experiência?
Eu faria tudo de novo. Eu não ganhei um tostão, porque não quis me desligar da Experimental e não podia ter dois salários. Mas tenho enorme orgulho de, naqueles quatro anos e dez meses, ter feito parte de um momento em que se pensou na estrutura do teatro, fazendo a Central Técnica de Produção, a reforma interna e externa do prédio. Foi um momento que vivi com todos os problemas imagináveis, e com um orçamento mínimo: R$ 3,5 milhões para toda a programação. Fora outras questões. Lembro que, quando a reforma ia começar, tivemos que nos mudar correndo para o Auditório Ibirapuera, correndo mesmo. E, quando nos instalamos, tivemos que voltar para o teatro, porque uma das empresas perdedoras da licitação tinha entrado com recurso e a reforma fora adiada. Mas havia uma vontade grande dos artistas. Os artistas do Theatro Municipal são extraordinários. Hoje esqueço todos os problemas que existiam e me lembro do privilégio que foi estar ali naquele momento.

“O projeto da fundação foi muito debatido. Mas no final, as decisões foram sendo afuniladas. A fundação que imaginávamos tinha uma cara mais compacta. Tanto que, quando vi que o projeto aprovado era o oposto, pedi para sair.”

Durante sua gestão foi delineado também o processo de criação da Fundação Theatro Municipal, que tem sido foco de críticas desde sua implementação. Como foi a discussão do projeto? Como você vê a atuação e o sentido da fundação?
O que eu faria agora? Eu não extinguiria a fundação, mas faria uma reforma de cima abaixo. As pessoas não podem imaginar o que era levantar uma produção antes da existência da fundação. Agora, o que houve foi o seguinte. O projeto foi discutido durante anos, mas, no final, houve um afunilamento das discussões. Eu nunca vi um processo tão democrático, tanta discussão. Foram várias reuniões com os artistas do teatro, várias discussões. O projeto foi muito debatido. No final da minha gestão, tínhamos um formato com um diretor de música, um diretor de dança e um diretor de produção. Funcionava muito bem, porque cada área cuidava de todas as intersecções, inclusive com a escola: entendíamos que a escola era parte central da estrutura, e que devias se comunicar com o teatro. Mas com lógicas específicas: como pensar em um diretor de formação único, cuidando tanto de dança quanto de música? Mas no final, as decisões foram sendo afuniladas. A fundação que imaginávamos tinha uma cara mais compacta, previa um diálogo interno muito maior. Tanto que, quando vi que o projeto aprovado era o oposto, fui ao secretário Carlos Augusto Calil e pedi para sair.

Você diz que reformaria a fundação. Como?
Criando uma estrutura que reconheça de fato a estrutura e as necessidades de um teatro com as especificidades do Municipal, como a presença das escolas. Estou certo de que houve a melhor boa vontade, que os objetivos eram os melhores possíveis. Mas a realidade se impôs. No fim da linha, deram-se conta de que o dinheiro não ia dar para contratar todo mundo por meio de CLT. O orçamento total na minha época era R$ 50 milhões, hoje passa de R$ 100 milhões, por conta da celetização. Mas o que fizeram ali foi celetizar uma parte, sem incluir a área educacional. Ao mesmo tempo, as escolas foram crescendo. Esses erros precisam ser corrigidos. Porque mudou-se o rumo inicial. Mas houve progresso sim, temos que ser generosos para reconhecê-los. E, claro, aparar as arestas, ajustar a estrutura à realidade do teatro, inclusive às novas condições econômicas. Qual será o estrago desta pandemia? A retomada vai ser muito complicada, o mundo não vai ser o mesmo. Mas temos que garantir que a música ainda faça parte dele. Como? Temos que repensar o que fazemos.

Em que sentido?
Utilizando os canais como a internet de maneira mais ativa, veja como no Municipal ainda estamos distantes da realidade do streaming, por exemplo. O foco tem que ser levar o que fazemos para mais pessoas. Mas agora a dúvida é: como vamos recomeçar depois disso. Em Piracicaba, temos R$ 700 mil da prefeitura e o resto vem de empresas. Elas continuarão a investir? Para que isso aconteça, temos que nos fazer valer de algumas armas. E a internet é uma delas. Temos que pensar longe do concerto fechado no teatro, o ponto de partida, mas não mais o fim. O que me deixa feliz é o fato de que a importância da música de concerto cresceu muito. Piracicaba tem um público fiel, que lotava o concerto e o ensaio geral. Tivemos que mudar para um teatro maior e ainda assim foi preciso manter o ensaio aberto. As pessoas estão aqui fora. Temos que saber quais pontes construir e onde e como fazer isso. Esse é o nosso desafio.

Obrigado pela entrevista.

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