O conjunto das nove sinfonias de Beethoven está entre as principais criações não apenas da música, mas da arte ocidental. Não parece haver dúvidas quanto a essa afirmação. Mas o modo como entendemos essas peças talvez possa ser relativizado.
“Nós temos a tendência moderna de imaginar a concepção de um ciclo de sinfonias como algo fechado, como se desde o início estivesse previsto o seu desenvolvimento”, diz o maestro e violinista Luis Otavio Santos. “É uma ideia errônea, romantizada. Elas, na verdade, vão sendo criadas e dialogam com o momento em que nascem.”
Santos comanda esta semana a Orquestra do Theatro São Pedro em duas apresentações das quais fazem parte a cantata Apolo e Daphne, de Händel, com a soprano Marília Vargas como solista, e a Sinfonia nº 8 de Beethoven.
Em entrevista ao Site CONCERTO, ele falou de suas visões a respeito dos dois compositores e da proposta de uni-los em um mesmo programa, apresentando dois universos sonoros diferentes, sim, mas às voltas com a ideia de herança musical.
Como surgiu a ideia de unir em um mesmo programa Händel e Beethoven?
A ideia foi pegar universos muito opostos e oferecer ao público uma experiência de escuta que se assemelha ao contato com duas culinárias diferentes. Normalmente, ao montar um programa, a gente pensa em coesão, em um tema, uma frase que faça as obras gravitarem em torno de uma ideia. Mas podemos também experimentar sabores diferentes. Händel, o universo do barroco, a música vocal, a relação com o texto, o recitativo, a ária da capo, o virtuosismo: este é um universo bem definido. E se contrapõe com Beethoven, com uma música já direcionada para o século XIX, em busca de um outro estilo já longe do barroco, ainda que não totalmente desligado dele. Porque não são, no final das contas, peças incompatíveis. Elas estão unidas por origens comuns, por convenções de retórica, de discurso. Beethoven, apesar de ser um visionário, também carrega esses elementos, nem que seja para ir contra eles: sua rebeldia também se dá em um contexto retórico, que remete ao universo da música barroca. Em outras palavras, a experiência auditiva que propomos é diferente, mas dentro de uma linha comum, que é a do discurso sonoro. E é bonito mostrar essa ponte sutil.
Como você definiria o espaço que a Sinfonia nº 8 ocupa à luz das nove sinfonias de Beethoven?
Nós temos a tendência moderna de imaginar a concepção de um ciclo de sinfonias como algo fechado, como se desde o início estivesse previsto o seu desenvolvimento. É uma ideia errônea, romantizada. Elas, na verdade, vão sendo criadas e dialogam com o momento em que nascem. A Sinfonia nº 8 é normalmente considerada uma obra menor, pequena, porque está estrangulada entre a sétima e a nona, sinfonias revolucionárias. As pessoas se decepcionam porque Beethoven retoma uma tradição de Haydn, de Mozart, e a obra parece mais tradicional por conta dessa volta ao clássico. Mas é muito bonito ver o Beethoven maduro homenageando esse modelo. E, apesar desse modelo, a sinfonia já tem esse traço do Beethoven final, um compositor que faz da música um manifesto. Esse estilo rebelde, agressivo, tem a ver com a ideia antiaristocrata, com uma música que não é mais de elite, é de todos. Esses acentos, esse forte, essa redundância nas cordas: é a quebra do decoro dessa retórica, já carregando a amplitude que a Nona sinfonia vai ter, essa percepção humana não mais restrita a um código aristocrático. Acho importante recolocar a Oitava a partir de um olhar mais plural que ela merece.
O que a prática da música antiga lhe ensinou a respeito de Beethoven?
Acredito que seja uma postura musical diferente, que vale aliás para todos os autores canônicos do século XIX, que sofrem do engessamento de um gosto musical que prevaleceu até a metade do século XX. Uma postura que se propõe a ver uma obra do ponto de vista da herança, de onde ela vem, de sua origem, e não do impacto que provocou depois. Na música de Beethoven, a gente consegue ver a tradição, a ação das sinfonias clássicas, a proporção das frases, a instrumentação coesa e refinada, o respeito à tessitura dos instrumentos, a preocupação com a forma musical, a clareza da forma sonata. E a partir daí o divertido é justamente ver onde o compositor deu um salto, onde sentiu a necessidade de dar um pulo para frente, como se estivesse cansado da tradição. E aí que está o elemento romântico, na quebra de convenções que vêm desde a Renascença. Nós vemos em sua música a tradição do contraponto, do concerto grosso italiano, a presença da ópera nos instrumentos que dialogam como se fossem personagens. Beethoven reconhecia esse legado e depois criava a novidade: essa é a pedra fundamental do Romantismo. Acho interessante ver como ele não se divorciou da tradição. E, na interpretação convencional, digamos assim, esse legado nem sempre é percebido. E o que sobra são leituras românticas baseadas no futuro e não no presente, no momento da criação da obra. Isso vale para ele, para Mozart, para todos.
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