Um álbum recém-lançado de um pianista romeno do qual jamais ouvi falar reforçou em mim a convicção do quanto é falsa a separação da música em gêneros.
Lucian Ban, de 53 anos, nasceu no país do Conde Drácula, numa aldeota rural chamada Teaca, na região da Transilvânia, na Romênia. Ficou marcado para sempre pelas canções folclóricas ouvidas na infância em casamentos, aniversários, festas, velórios, etc.
Começou a aprender piano quando mudou-se com a família, aos 7 anos, para Cluj, a quarta cidade romena em população. Entre 1992 e 1995, estudou composição na Academia de Música de Bucareste. Chegou a lançar dois álbuns na Romênia antes de se mudar para Nova York em 1999. Nos últimos vinte anos – constatei nestes últimos dias, ouvindo vários de seus álbuns – conseguiu fundir as raízes folk romenas com a maturidade como músico e compositor.
Lembram-se das canções folclóricas que Bela Bartók passou vários anos, entre 1904 e 1917, recolhendo na região da Transilvânia? Aquelas de métricas irregulares, ritmos quebrados e melodias angulosas porém prenhes de vida, muitas delas presentes no melhor método de piano que conheço, os seis volumes do Mikrokosmos?
Lucian parece tê-las ouvido quando criança e em seguida estudado cuidadosamente cada um dos cadernos, que começam com exercícios em uníssono nas duas mãos e terminam concedendo, a quem os estuda com seriedade, total independências das mãos. Fabuloso.
Já adulto, Lucian vem reinventando de modo extraordinário estas canções que representaram, para Bartók, um caminho para ganhar DNA próprio. Em maio de 2020, já na pandemia, ele se juntou a outros dois músicos de exceção – John Surman (saxofones) e Mat Maneri (viola) – e embarcaram na reinvenção de danças do primeiro caderno de anotações de campo de Bartók em 1904. Pouco mais de um século atrás, ele embasbacou-se ouvindo e vendo Lili Dósa, de 18 anos, mostrar dançando canções de sua aldeia na Transilvânia. Ao todo, Bartók gravou e transcreveu mais de 3.400 canções folclóricas camponesas do leste europeu. E declarou que aquele tinha sido “o gol da minha vida”.
Pois em 2013 o trio Lucian-Mat-John Surman dedicou um álbum inteiro a elas (ECM). Vale a pena assistir The Dowry song (Canção do dote) no YouTube: raras cenas de época mostram camponeses romenos dançando... só que neste vídeo ao som das reinvenções do trio contemporâneo.
No mesmo ano de 2013, Lucian e Maneri lançaram, também pela ECM, Transylvanian Concert. Três anos antes, em 2010, comandou um octeto reinventando composições de George Enescu (1881-1955), o notável e injustamente pouco lembrado compositor romeno que atuou e viveu a maior parte da vida em Paris.
Lucian Ban acaba de lançar o álbum solo Ways of Desappearing, pelo selo nova-iorquino Sunnyside, gravado ano passado num poderoso piano Bösendorfer na Sala de Concertos Barroca em Timisoara, no coração da sua Transilvânia. Uma emocionante “viagem” por sua ancestralidade, agora enriquecida com as duas décadas de vivência nos EUA.
Catorze performances que resvalam sutilmente, aqui e ali, na linguagem bartokiana. Um piano ao mesmo tempo descarnado e intenso, em que cada nota, cada acento soa essencial. Experimente ouvir O coração do que existe e Remorso, duas gemas.
Lucian assina doze das catorze faixas e revisita duas influencias jazzísticas importantes em sua vida: Carla Bley (1936), autora de Ida Lupino; e Annette Peacock (1941) e seu Albert’s Love Theme. A primeira, notável compositora e pianista parceira de grandes nomes como o contrabaixista Charlie Haden e seu parceiro afetivo e superlativo contrabaixista Steve Swallow; a segunda, pianista, cantora e compositora, expert no jazz experimental.
No mais alto nível, Lucian prova que é possível compor e improvisar música sem firmes bases tonais (herança da paixão por Bartók) e sempre intensa (talvez influência de Enescu) e torná-la instigante para os ouvidos.
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