Não só os privilegiados que assistiram presencialmente, também os que, como eu, compartilharam digitalmente o memorável, inesquecível mesmo, concerto do oboísta e regente suíço Heinz Holliger com a Osesp saíram transformados. É um privilégio poder compartilhar com um músico tão extraordinário o modo como ele faz da música um alimento essencial para todo ser humano.
Nestes tempos de guerra, assassinatos cruéis e inomináveis, em que vida e morte misturam-se diabolicamente, Holliger, desfrutando da maturidade de seus 82 anos, construiu um concerto diversificado, porém unificado por um fio condutor que ilumina justamente esta equação vida-morte. Na entrevista exibida no intervalo do concerto digital, ele diz que concebe seus concertos como se fossem uma obra só. Não são suas palavras exatas, mas o sentido é este.
Saber montar um concerto é decisivo para que o público sinta-se impactado. O outro quesito indispensável é a qualidade de interpretação. Um regente como Holliger eleva radicalmente o nível de uma orquestra. E não foi diferente com a Osesp, em estado de graça durante esta trinca de concertos sinfônicos desde já ocupando lugar de destaque entre os melhores de 2022.
O fio condutor de Holliger levou-o a iniciar com a batidíssima Clair de lune, de Debussy, na versão orquestral de André Caplet, e concluir com a também conhecidíssima Inacabada de Schubert. Entre uma e outra, levou-se longe, muito longe, para um mergulho na melhor e mais radical música contemporânea.
Aos que se encantaram com Debussy e Schubert seria bom reassistir este concerto no canal da Osesp digital. Numa segunda audição/visão, percebe-se que o núcleo central não é Debussy nem Schubert, mas sua composição Dammerlicht, de 2014/2015, que teve sua estreia brasileira nestes concertos. Não me lembro de outro concerto da Osesp em que a música contemporânea tenha constituído o núcleo central e mais importante do programa.
Quatro movimentos, para voz e grande orquestra, quase meia hora de duração, explora, como seu título Crepúsculo indica, aquele momento de passagem entre dia/noite, vida/morte. Um momento mágico, que encanta músicos e compositores desde o romantismo do século 19. A voz da soprano Juliane Banse mais do que misturar-se, funde-se com as sonoridades tão diversas dos instrumentos, que por sua vez também tentam emular a vocalidade humana. Holliger explora de modo genial estes – não há como evitar o palavrão – interstícios entre voz/instrumentos. A voz “gostaria de ser” um instrumento, e vice-versa,
Os românticos fascinavam-se pelo “lusco-fusco”, o momento em que não se vive mais o dia e também ainda não estamos mergulhados na noite/morte. Daí fazer todo sentido o luar debussista que abriu o concerto. Daí também a adequação precisa das três últimas canções de Debussy, já no limiar da morte, sobre poemas de Mallarmé sintomaticamente intitulados suspiro e apelo fútil, isto é, inútil. Daí, finalmente, a Inacabada de Schubert encerrar esta viagem. Porque a vida, parece dizer-nos Holliger ao construir este itinerário, está sempre em movimento e, ao encaminhar-se para a morte, o momento estático a que todos nós estamos condenados, experimenta este sentimento agridoce, indefinido mas crucial. O maior rito de passagem.
Os músicos da Osesp pareciam transfigurados, vivíamos todos – os que assistiram presencialmente e os remotos, como eu – a consciência da fragilidade humana... e da força eterna da música.
Este concerto admirável me fez lembrar um artigo de outro suíço, Philippe Albéra, a respeito da arte deste músico extraordinário, essencial: “A música de Heinz Holliger não se aparta da história; sua trajetória pessoal confunde-se com a da música em seu conjunto, algo que ele conhece nos mínimos detalhes”, diz. E conclui: “Sua música não se projeta num futuro utópico depurado das escórias da tradição: reflete seu próprio destino com angústia, tentando salvar a utopia da qual as obras do passado são testemunhas”. As obras do presente também são utopias de nossas mazelas, acrescento eu.
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