Duo se apresentou na Sala Watari, em Campinas, como que numa espécie de extático milagre sonoro
Na noite do solstício de verão deste ano, dois astros juntaram-se na Sala Watari, em Barão Geraldo, Campinas: no violino, Guido Sant’Anna, o prodígio de 19 anos, prêmio Fritz Kreisler, e no piano, Cristian Budu, o mago de 34 anos, prêmio Clara Haskil.
Foi, para mim, a apresentação musical mais esperada do ano. Era a primeira vez que esses fabulosos rapazes tocavam juntos. E o resultado foi de beleza tão vertiginosa que me sinto travado para escrever. Nenhum adjetivo, nenhum superlativo, nada pode dar qualquer ideia do que ocorreu ali. Não eram dois virtuoses tocando apenas; era a própria música criando-se, nascendo, com frescor, beleza, investimento, entusiasmo e cumplicidade como que numa espécie de extático milagre sonoro.
O recital começou com as Três romances, op. 94, que Robert Schumann escreveu para oboé e piano, mas cuja estreia, em 1850, se deu com violino. Elas são também, por vezes, interpretadas na clarineta ou no violoncelo, mas a versão para violino é mais frequente. Na sonoridade do oboé, surge o sentimento de um apelo doloroso, elevado, “metafísico”, com o perdão da palavra: basta ouvir a sublime gravação que Holliger e Brendel fizeram dela há décadas para sentir sua elevação. Com o violino, a obra se torna interiorizada, íntima e confidencial.
A junção do piano, com a rica espessura de seus sons harmônicos, com as melodias fluídas do violino, resultou em trançado de perfeita interdependência. E foi esplêndido ouvir como se completavam os temperamentos dos intérpretes – um, telúrico, outro aéreo. Enquanto o primeiro se entregava a uma relação de poderosa intensidade sensual com o piano, o segundo, sem nenhuma afetação, movimentava-se numa espécie de dança que o conduzia a um transe musical, lançando olhos para o alto, numa pura visão de música, movendo os lábios, como se cantasse as notas da melodia. Ambos se integravam, simbióticos, formando uma unidade sem falhas.
Escolheram, em seguida, a Sonata nº 1 para violino e piano, de Brahms, chamada “Sonata da chuva”, porque Brahms incluiu nela ideias sonoras extraídas de duas canções por ele compostas: Canção da chuva e Eco distante – ambas, por sinal, inspiradas no tema das gotas que caem do céu. Elas imprimem um lirismo melódico na sonata que a aproxima ao espírito poético de Schumann e de Schubert também.
Brahms cria grandes “respirações” sonoras, profundas, que se inflam e esvaziam: basta lembrar o primeiro movimento da Sinfonia nº 4, ou o célebre terceiro, da nº 3. Essas “respirações” também estão presentes nesta sonata. Na orquestra, possuem magnitude cósmica, oceânica; na Sonata são delicadas, interiores, introspectivas. Assim, no início do segundo movimento, adagio, depois dos dez compassos iniciais do piano, o violino faz se pousarem duas unidades de três colcheias como suspiros quase imperceptíveis. Esses pequenos sopros evoluem, ganhando forma e vida: eles se alçam, se expandem, pulsam, modelam-se lentamente para se exaurir no final. É muito raro que a arte dos sons alcance uma beleza tão alta e tão comovente.
E igualmente raro é encontrar intérpretes conduzindo um fraseado tão sensível e tão justo, um respeito expressivo de todas as nuanças, como ocorreu no solstício da Sala Watari. Guido Sant’Anna e Cristian Budu estavam inteiramente habitados pela música.
Eu creio que existe uma diferença entre alma e espírito. A alma, pelo menos para mim, é interior, vive no âmago do nosso coração e expressa o movimento de seus afetos encerrada ali: os sofrimentos morais contidos, as paixões, felizes ou melancólicas. O espírito emana de nós para se sintonizar com manifestações poéticas do mundo: um fim de tarde delicado, um sorriso cúmplice, um perfume de dama-da-noite, a simpatia de um amigo. Pensando em termos de música, por essas definições eu diria que a alma é alemã, e o espírito é francês.
Se for mesmo assim, no recital de Sant’Anna e Budu, da primeira para a segunda parte do recital passou-se da alma para o espírito.
Começou com um espírito no sentido fantástico e espectral do termo, o que brota do Poème, de Ernest Chausson. A composição, é inspirada num conto neogótico, sobrenatural e exótico, O canto do amor triunfante, em que Ivan Turgueniev põe em cena uma melodia “ouvida no Ceilão”, capaz de juntar em sonhos, e também na vida “real”, uma mulher, sonambúlica, e um bruxo violinista, ou um violinista bruxo.
Chausson escreveu essa obra para violino tanto para orquestra quanto para o piano. As duas versões criam efeitos diferentes. A orquestra exprime uma eloquência suntuosa e cenográfica; o piano traz para uma proximidade imediata o fascínio, o sortilégio, que tomam o ouvinte.
Na sala Watari, Sant’Anna e Budu obtiveram as nuanças refinadas, a sonoridade diáfana necessária, os timbres delicados, os arroubos controlados e elegantes que a partitura exige. Nessa altura, o público já estava enfeitiçado e totalmente rendido à música dos dois.
A última peça do programa foi a Sonata nº 2 para violino e piano de Ravel. Marcel Marnat escreveu que Ravel possuía uma “elegância arriscada” em suas obras, no sentido em que ele expunha sua intrínseca e natural a riscos de combinações sonoras inesperadas e saborosas – mas nada seria capaz de ameaçar a suprema elegância raveliana. Esta sonata expõe particularmente o ouvinte a invenções que podem ser desconcertantes, mas que são requintadas, exquises. Ravel costumava dizer que o piano e o violino são instrumentos naturalmente incompatíveis. Em sua sonata, ao invés de fundi-los, insiste em contrastá-los, sem asperezas, porém, coisa que parece impossível ocorrer em sua música.
Na obra convergem o jazz e Bartók, eliminando o pitoresco e o sentimentalismo: “ela se distancia, deliberadamente, da tradição das sonatas individualistas, sensíveis e pensativas como se mostram as obras similares de Franck, Lekeu, ou Fauré (e, da mesma forma, as de Brahms)”, como escreve Marcel Marnat.
Livre de qualquer traço de sentimentalismo, sem nenhum vague à l’âme, ela representa sem dúvida uma ruptura, e uma ruptura ousada, tanto do ponto de vista do estilo quanto da técnica. Nossos dois grandes intérpretes fizeram desta obra exigente, virtuosística, uma apoteose: precisão, beleza sonora, vitalidade pulsante.
O recital se terminou por dois bis: Liebesfreud e Liebesleid de Fritz Kreisler, tocadas com uma liberdade, finura e entusiasmo de dar gosto. Após o recital, comentei com Guido Sant’Anna que, com esses bis, ele havia homenageado o patrono do concurso internacional em que fora vencedor. Ele então me falou de sua paixão pelo mítico Kreisler. Belo interesse, em um jovem intérprete de tão alta categoria, que se volta para as lições insuperáveis de um gigantesco mestre do passado.
Para concluir: como a procura foi muito grande, a Sala Watari programou o recital duas vezes, na sexta e no sábado. Tive a felicidade de poder estar presente nos dois. Cada um teve inflexões interpretativas distintas, prova de que não se tratava de uma repetição mecânica, mas de um genuíno renascimento em cada apresentação.
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