Nós nos acostumamos a elogiar o trabalho de Fernandez na concepção e estruturação do projeto educacional de Villa-Lobos; mas nos esquecemos de que ele foi ótimo compositor, como mostra o álbum de Clélia Iruzun
Radicada há muitos anos em Londres, a pianista brasileira Clélia Iruzun, de 62 anos, vem desenvolvendo uma carreira muito interessante. Possui uma discografia consistente, toda gravada na Europa. Ela explora o repertório dos séculos XIX e XX, com ênfase nos compositores brasileiros.
Não é exagero apontá-la como pianista diferenciada, que em plena maturidade combina interpretações de alta qualidade com uma compreensão diferenciada dos repertórios que domina. Isso vale tanto para, por exemplo, os dois álbuns que dedicou ao originalíssimo compositor catalão Federico Mompou quanto para a música brasileira.
Aliás, Clélia também domina o repertório latino-americano. Tudo isso sem descartar o chamado grande repertório: com orquestra, cultiva o hábito de colocar, lado a lado, concertos de compositores brasileiros com compositores europeus. Como, por exemplo, juntar o concerto “egípcio” de Saint-Saëns com o concerto de Henrique Oswald; ou os concertos de Albéniz e de Mignone, em gravações com a Royal Philharmonic Orchestra.
Sua mais recente façanha neste garimpo de pepitas pianísticas da música brasileira é o álbum Obras para piano de Lorenzo Fernandez, da série Música do Brasil, parte do projeto Brasil em concerto, que além da música sinfônica brasileira dos séculos XIX e XX também vem virtuosamente contemplando obras camerísticas e para piano solo. A série é lançada pela Naxos e vem modificando o status da música dita erudita ou clássica brasileira no planeta.
Além do pleno domínio técnico e artístico de seu metiê, Clélia também “pensa” bem o seu oficio, como atesta o seu texto no encarte do álbum Lorenzo Fernandes: “O tratamento harmônico inovador e complexo das melodias se destaca como uma característica definidora do estilo composicional de Lorenzo Fernandez, realçando o caráter expressivo de suas obras. Em uma entrevista para o rádio em 1947, ele reconheceu suas primeiras influências – Beethoven, Wagner e Debussy – ao descrever como mais tarde desenvolveu uma linguagem musical que capturou tanto as lutas sociais do Brasil quanto sua natureza nostálgica. Alguém, talvez, também pudesse detectar uma pitada de sabor espanhol em algumas de suas peças, incluindo inflexões harmônicas semelhantes às do compositor catalão Frederic Mompou”.
Depois de chamá-lo corretamente de “miniaturista” pela curta duração de suas peças para piano, Clélia nos mostra por que elas são quase sempre muito interessantes. Mesmo que a metade de sua produção para piano seja destinada a crianças, portanto mais simples, ele é quase sempre capaz de combinar escrita virtuosística com “efeitos altamente originais”, destaca no encarte. Vale a pena reproduzir sua análise sucinta dos Três estudos em forma de sonatina, compostos em 1929: “O primeiro movimento, Allegro con brio, começa com um ritmo energético seguido por um segundo tema cheio de síncopes, característico do choro. Os temas se alternam chegando a um clímax com sons orquestrais. O segundo movimento, Moderato, é profundamente lírico, apresentando um de seus temas mais inspirados. O segundo tema é algo incomum, pois é escrito em compasso 10/8. No terceiro movimento, Allegro scherzoso, a peça retorna ao ritmo animado com semicolcheias rápidas e efeitos quase percussivos com a introdução de acordes que atravessam toda a extensão do teclado, com possíveis ecos de Villa-Lobos neste movimento”.
Outro destaque, a Sonata breve, sua derradeira peça para piano, de 1947, dá o que pensar em como sua escrita evoluiria tivesse ele vivido mais uma ou duas décadas. Ela impressiona pela complexidade de escrita: “Enérgico”, primeiro movimento, sugere uma busca livre por sonoridades, independente de cânones ou regras; “Largo e pesante”, o segundo movimento, em ritmo pontuado, parece recusar o movimento, num estado de perplexidade inexorável; e o terceiro, “Impetuoso”, que começa com um cânone, é seguido por um moto perpétuo “carregado de oitavas”, como escreve Clélia no encarte. “A mão direita sincopada salta ao redor da extensão do teclado de uma forma traiçoeira”. Depois de todos estes detalhes técnicos, Clélia conta que o compositor comentou que, como tentou libertar-se dos processos convencionais melódicos, rítmicos e harmônicos, seria inútil tentar uma análise técnica. “Sugeriu, em vez disso, que ela deve ser simplesmente experimentada por meio da audição”. Verdade. Ainda mais na execução de Clélia, exemplar.
Há muito mais para explorar neste saboroso álbum. Como, por exemplo, as peças “impressionistas” de 1922 e 1923, que levam títulos em francês: Rêverie, os cinco Prelúdios do Crepúsculo e, sobretudo, as três Suítes brasileiras, compostas entre 1936 e 1938, década em que foi figura-chave do projeto educacional de Villa-Lobos. Mas, ao contrário de atuar como os coletores de temas folclóricos, ele preferiu criar seus próprios temas. E deu-se muito bem.
Nós nos acostumamos a elogiar o trabalho de “formiguinha” de Fernandez na concepção e estruturação do projeto educacional nacionalista de Villa-Lobos. E nos esquecemos de que ele foi ótimo compositor – este é o maior mérito do ótimo álbum de Clélia Iruzun.
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![A pianista Clélia Iruzun [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-24-CLELIA-189A7939_0.jpg)
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