Se as melhores orquestras do planeta nos visitam com certa regularidade, a presença dos coros internacionais de ponta por aqui é muito mais rara. Assim, uma ocasião como a vinda do Monteverdi Choir, sob a batuta de um astro do quilate de Sir John Eliot Gardiner, ganha caráter histórico – e não apenas historicamente informado –, para sacudir nossos envelhecidos paradigmas e suscitar, além de pasmo por sua inacreditável excelência, uma reflexão muito necessária. Não se trata, apenas, do “concerto do ano”, mas de um concerto que continuará a reverberar em nossas memórias por muitos anos.
Afinal, a Inglaterra está para o mundo coral como a Alemanha está para o universo das orquestras. E ela nos ensina que sim, é possível um coro com integrantes que não tenham vibrato e ego descontrolado, e que, em vez de se esgoelarem para encobrirem as vozes de seus colegas, timbrem harmoniosamente dentro de seus naipes. Sim, é possível um coro cujos integrantes não sejam solistas recalcados, e trabalhem harmoniosamente pela construção de um discurso sonoro.
E que discurso sonoro! Para sua primeira visita à América do Sul, Gardiner não trouxe o Bach com que percorreu o mundo, preferindo um repertório que quase nunca se ouve por aqui. Cada metade do programa começou com uma peça breve de Henry Purcell (1659-1695) – afinal, o grupo é inglês –, mas as três grandes obras eram do repertório católico latino: Missa a quatro vozes, de Claudio Monteverdi (1567-1643), o oratório Jephte, de Giacomo Carissimi (1605-1674), e o Stabat Mater, de Domenico Scarlatti (1685-1757) – do qual os pianistas e cravistas conhecem as sonatas, mas que aqui compareceu com uma potente partitura polifônica.
O concerto teve legendas, como se estivéssemos em uma ópera, e essa projeção foi especialmente bem-vinda. Pois, dotados de uma dicção impecável, os cantores do Monteverdi Choir respondem de maneira imediata ao afeto de cada palavra do texto – mesmo que estejam deslindando uma intrincada trama polifônica, como ocorre na missa do compositor que dá nome ao grupo. A aproximação mais próxima do universo operístico, obviamente, deu-se no oratório de Carissimi, em que a pungente história bíblica do sacrifício da filha de Jefté foi contada com uma discreta, porém muito eficiente, movimentação cênica. Talvez para ressaltar a prevalência do coletivo sobre o individual, o programa não especificava o nome de nenhum dos solistas. Pena; pois, embora os solos fossem breves, e não especialmente virtuosísticos, teria valido a pena destacar a cantora que soube ser tão expressiva no papel da moça destinada ao holocausto.
Feita de volteios e socos no ar, a técnica de regência de Gardiner não parece focada em bater o tempo ou dar as entradas. É como se suas mãos moldassem a sonoridade do coro em tempo real, estabelecendo os planos sonoros, construindo as frases e indicando os incontáveis matizes de dinâmica, com pianos súbitos surpreendentes, e um engenhoso revezamento de respiração que conseguia produzir longuíssimas sonoridades sustentadas e contínuas.
Os cantores foram acompanhados por The English Baroque Soloists, que povoaram a Sala São Paulo de contrabaixo, harpa (Gwyneth Wentik, cara metade do regente), órgão, cravo, teorba e viola da gamba (a musicalidade refinada de Kinga Gaborjani-Szabo), formando um contínuo jamais intrusivo ou prolixo, e dotado de enorme bom gosto e senso de estilo.
Antes do bis, Gardiner fez ainda um gentil pronunciamento, ressaltando o caráter beneficente da apresentação promovida pela Tucca – Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer. E atacou um coro duplo da ópera Il Ritorno d'Ulisse in Patria, de Monteverdi. Essa breve janela do teatro barroco foi absolutamente eletrizante, e deu vontade de ouvir, imediatamente, a ópera inteira.
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