Jordi Savall: da espiritualidade introspectiva à exuberância coreográfica

Um dos rituais mais saudáveis da vida musical paulistana no último quarto de século é o reencontro periódico com Jordi Savall. Cosmopolita com forte sentido de pertencimento à sua oprimida Catalunha natal, Savall é um humanista de apetite musical onívoro que vem trazendo o Brasil os diversos grupos que criou, compartilhando conosco programas e repertórios dos mais variados, vocais e instrumentais, do Barroco mais tradicional às diversas poéticas que dialogam com a tradição oral.

Não parece exagero dizer que para seu instrumento, a viola da gamba, Savall tem uma importância análoga à que, há um século, a polonesa Wanda Landowska (1879-1959) teve para o cravo, revitalizando e recolocando em circulação um instrumento até então esquecido. No terceiro milênio, ser contemporâneo de um “pai fundador” dessa magnitude é um privilégio. E Savall, no palco, porta-se mais como discreto mestre de cerimônias do que como estrela internacional. Na última terça-feira, dia 19, por exemplo, discretamente afinava sua viola da gamba na Sala São Paulo antes da apresentação na série da Sociedade de Cultura Artística, aparentemente alheio ao movimento do público que lá entrava para reverenciá-lo.

Dessa vez ele veio com Le Concert des Nations, grupo de música antiga que criou em 1989 com sua mulher, a saudosa soprano Montserrat Figueras (que várias vezes encantou as plateias brasileiras com sua voz cristalina e luminosa presença de palco). O nome do conjunto veio da obra Les Nations, de François Couperin (1668-1733), e o programa era todo da França: Savall nos propôs uma jornada cronológica pelo Barroco francês ao longo dos séculos XVII e XVIII, tendo como fio condutor as cortes dos reis Luís XIII, Luís XIV e Luís XV. Partimos, assim, de Guillaume Dumanoir (1615-1697, nome que devo confessar que desconhecia até lê-lo nas notas de programa) para chegar ao brilho italianizante de Couperin e Jean-Marie Leclair (1697-1764), passando por Jean-Féry Rebel (1666-1747).

Savall demonstrou não apenas continuar com a técnica apurada e em dia, mas sobretudo seguir sendo um mestre rematado da enunciação e da retórica

Les Concert des Nations é uma espécie de marca abrangente para uma formação bastante flexível, que já chegou até a uma grande orquestra, executando sinfonias de Beethoven. Ao Brasil, veio um grupo enxuto, para a mais refinada prática de música de câmara. Difícil escolher um destaque entre os talentos de Charles Zebley (flauta), Josep Maria Martí (teorba), Marco Vitale (cravo) ou Philippe Pierlot (a segunda viola da gamba). Contudo, como primus inter pares, luziu especialmente o desempenho superlativo de Manfredo Kramer ao violino.

Aos 82 anos, Savall é obviamente o líder, o que não significa que se atire o tempo todo sob os holofotes. Muito pelo contrário: quem não o conhecesse poderia imaginar que ele era apenas mais uma voz nesse diálogo musical profundo e deleitoso. Para quem saiu de casa especificamente para vê-lo, o ponto alto foi a segunda parte da primeira metade do programa, com Sainte-Colombe (1640-1701) e Marin Marais (1656-1728), autores até então olvidados, que Savall colocou (ou recolocou) no mapa da música na trilha sonora do filme Todas as Manhãs do Mundo (1991), de Alain Corneau (por sinal, o livro de Pascal Quignard que inspirou a película acaba de ser lançado em nova edição brasileira pela editora Zain).

Foi tocante vê-lo anunciar com sua voz macia cada uma das seções do  Tombeau Les Regrets, de Sainte-Colombe, bem como executar com a verve e o calor característicos os Couplets des Folies d’Espagne, de Marais, e esbaldar-se na Sonnerie de Sainte-Geneviève du Mont de Paris, do mesmo compositor. Transitando facilmente entre a espiritualidade introspectiva de Sainte-Colombe e a exuberância coreográfica de Marais, Savall demonstrou não apenas continuar com a técnica apurada e em dia, mas sobretudo seguir sendo um mestre rematado da enunciação e da retórica (com um poder de concentração não abalado sequer pelo insistente matraquear de um celular impertinente). Fomos à Sala São Paulo para ouvir um concerto, e ganhamos de brinde uma master class sobre o discurso musical do Barroco. Que luxo! 

Jordi Savall e os músicos do Le Concert des Nations após apresentação na Sala São Paulo [Divulgação/Cultura Artística]
Jordi Savall e os músicos do Le Concert des Nations após apresentação na Sala São Paulo [Divulgação/Cultura Artística]

 

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