Mahler, Schoenberg e duas lições de canto

por João Luiz Sampaio 11/07/2022

A música de Gustav Mahler está no DNA da Osesp – assim como a dificuldade recorrente em acompanhar cantores, que muitas vezes sofrem com a falta de equilíbrio entre orquestra e voz e acabam inaudíveis.

No concerto do último sábado, a Osesp e Thierry Fischer se apresentaram com a mezzo soprano Wiebke Lehmkuhl em uma seleção do ciclo Des Knaben Wunderhorn. E o começo não foi promissor. Em A canção noturna da sentinela, as sutilezas da voz acabaram encobertas por um acompanhamento truculento.

Mas, a partir de Quem imaginou esta cançãozinha?, segundo item da apresentação, tudo mudou. Sob o comando de Fischer, a Osesp entrou em simbiose com a voz. E a partir dali mostrou-se cuidadosa não apenas no acompanhamento, mas atingindo efeitos muito interessantes, como na recriação do caráter irônico do Sermão de Santo Antônio de Pádua aos Peixes ou no trabalho das cordas de A vida terrena, culminando em uma leitura etérea de Luz primordial, em que os metais tiveram excelente desempenho.

Tal diversidade deve-se também ao trabalho de Lehmkuhl. As canções de Des Knaben Wunderhorn se constroem justamente a partir de contrastes. Elas falam de amor, de guerra, de transcendência, de desencanto – e a mezzo soprano soube criar, para cada canção, uma leitura muito particular. Mas mesmo dentro de cada uma das peças, há caráteres múltiplos. De tom narrativo, elas muitas vezes se abrem a diferentes vozes.

Exemplo bem-acabado disso é A vida terrena, em que há um diálogo entre a criança que sente fome e a mãe que busca comida. Lehmkuhl assume ambas as vozes mostrando que a simplicidade e a força do texto pedem mais o contraste do que o exagero. E a voz, muito rica tanto nos agudos quanto nos graves (e nas zonas de passagem), explora cada linha com profunda intensidade. Uma única canção, sim, mas que serve como exemplo de um concerto marcado, na orquestra e no canto, por leituras maduras.

Enquanto na Sala São Paulo ouvia-se Mahler, no Theatro Municipal de São Paulo outro olhar para a passagem do século XIX para o XX, também com a voz como destaque, subia ao palco com  Erwartung, de Arnold Schoenberg, com a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, o maestro Alessandro Sangiorgi e a soprano Adriane Queiroz.

O monodrama é de 1909 e se baseia no texto de Marie Pappenheim sobre uma mulher que em uma floresta escura se depara com o corpo morto de seu amante. Se é símbolo da escrita atonal que marca esse período da carreira do compositor, é também representativa de um corpo de ideias que o aproxima de seu tempo.

Ambas as coisas, na verdade, andam lado a lado. Em uma carta ao pintor Wassily Kandinsky, em 1911, Schoenberg diz que “qualquer procedimento formal que aspira a efeitos tradicionais não está totalmente livre da motivação consciente”. Mas a arte, completa, “pertence ao inconsciente”.

Na música de Erwartung, a novidade está ligada não apenas à escrita atonal, mas também, como afirmam Carolyn Abbate e Roger Parker, ao trabalho com os timbres – a ele caberia recriar, nas palavras do compositor, os “prazeres sensoriais, intelectuais e espirituais oferecidos pela arte”. E a atenção a este aspecto marcou a intensa interpretação da Orquestra Sinfônica Municipal no espetáculo apresentado na sexta-feira à noite.

A importância de Erwartung, porém, está tanto no texto de Pappenheim quanto na música de Schoenberg. Naquele começo de século XX, a médica tinha interesse profundo pela psiquiatria e estava bastante inteirada das ideias de Sigmund Freud e outros autores que abriam então nossa percepção da mente humana.

É daí que nasce o fluxo de consciência de Erwartung, cujo arco mais amplo vem de fragmentos aparentemente desconexos. Nada é necessariamente real e cada frase leva a um mergulho no instante do que Pappenheim chamava de “um lapso de pensamento”. E a que Schoenberg se referia ao definir a obra como a “representação em câmera lenta do que ocorre em um simples segundo de máxima excitação espiritual”. 

Um segundo expandido para meia hora de música. Está aí a grande dificuldade para a intérprete, que Adriane Queiroz superou com enorme inteligência musical. Sua leitura, sem abrir mão dos contrastes (em uma voz que tem ganhado cada vez mais em maturidade e coloridos), notabiliza-se pela técnica refinada e em especial pela inteligência com que dá vida ao texto, atenta a cada inflexão, a cada pequeno clímax que, na linguagem fragmentada de libreto e de música, dão vida à mente da personagem e abrem mão do sentido de linearidade.

Apresentação de 'Erwartung' no Theatro Municipal de São Paulo [Revista CONCERTO]
Apresentação de 'Erwartung' no Theatro Municipal de São Paulo [Revista CONCERTO]

 

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