As mulheres e as formidáveis canções brasileiras

por João Marcos Coelho 25/09/2019

As mulheres estão mesmo na linha de frente da cena musical paulistana neste segundo semestre. Uma “invasão” muito bem-vinda, que busca senão corrigir, ao menos mitigar a discriminação que historicamente elas vêm sofrendo no decorrer de vários séculos.

Assim, além da estreia brasileira da ópera Prism, da norte-americana Ellen Reid, na primeira quinzena deste mês no Theatro Municipal de São Paulo, dois importantes CDs de canções para voz e piano chegam simultaneamente às plataformas de streaming e também em formato físico: Vozes Mulheres e Cromo.

Vozes Mulheres é um caprichadíssimo projeto da soprano Adélia Issa e da pianista Rosana Civile. Elas interpretam quinze canções assinadas por mulheres – e o que é melhor, compositoras brasileiras. Com um detalhe: incluem três canções da tão injustamente esquecida Eunice Katunda (1915-1990). Também resgatam a pianista e compositora carioca Helza Camêu (1903-1995), de quem, confesso, jamais havia escutado nada; e as mais conhecidas Kilza Setti, Esther Scliar e Dinorá de Carvalho. 

Mas agora quero me concentrar em “Cromo”, a segunda e arrojada experiência proposta pelo ótimo pianista Antonio Vaz Lemes, depois de Sonata brasileira. Desta vez, o pianista propõe, em suas palavras, “um caminho que facilite o acesso da música de concerto, o das miniaturas. É um álbum de canções líricas brasileiras, livremente inspirado no roteiro do Dichterliebe [Amor do poeta, de Robert Schumann, um dos mais celebrados ciclos de lieder românticos], porém interpretadas por uma cantora popular”. No caso, a ótima Eliane Barni. 

[Reprodução]
[Reprodução]

Vaz Lemes já havia feito uma parceria com ela em 2008, quando montaram um espetáculo em tributo aos 50 anos da bossa nova. Mas agora ele inverte atrevidamente o processo. Em vez de um pianista clássico se aventurando na música popular, ele puxa Eliane para o reino da chamada canção culta.  Ao todo, onze canções e dois ponteios para piano solo (de Camargo Guarnieri e de Lina Pires de Campos; esta última também assina a canção Eu sou como aquela fonte). A informalidade da voz não empostada de Eliane é uma autêntica revelação para canções ditas eruditas, assinadas por nomes como Guarnieri e Lorenzo Fernández (excepcional sua linda Dentro da Noite, neste terreno movediço chamado eruditopopular, no qual um dos escolhidos, Edmundo Villani Côrtes, move-se com uma desenvoltura impressionante).

Ronaldo Miranda, por exemplo, deve ter se encantado com esta leitura do Soneto da Separação de Vinicius que ele musicou.  E Vaz Lemes, numa bela sacada, toca em seguida o Ponteio nº 49 de Camargo Guarnieri, que o compositor qualificou como “Torturado”. Casamento perfeito de duas obras em princípio ligadas apenas por um adjetivo.

Não podia faltar a Modinha de Villa-Lobos, claro. Por isso fui logo ouvir Coração Triste, parceria ilustre de Alberto Nepomuceno, um dos maiores batalhadores pelo canto em português, com poema de ninguém menos do que Machado de Assis. Como Nepomuceno é bom nestas canções. E Lacerda também, que delícia sua Cantiga na interpretação descontraída de Eliane Barni. 

 

Nos “shows” de lançamento – é assim que Vaz Lemes qualifica as apresentações deste repertório –, ele promete “misturar essas canções com outras realmente populares, de Rita Lee, Guilherme Arantes, Lulu Santos e Paulinho da Viola”. “Quero provar que, apesar do gênero, tudo é canção brasileira.”

A gravação foi realizada em maio de 2018 no Estúdio Monteverdi de André Mehmari, que deve ter adorado trabalhar no projeto e responsabilizou-se pela mixagem. Desde já, um dos melhores lançamentos de 2019 no reino da canção. Não por acaso, o CD sairá internacionalmente por uma gravadora também diferenciada: Odradek.

O selo representa uma das mais arrojadas iniciativas da última década. Seu responsável é o pianista norte-americano John Anderson, nascido em Lawrence, no Kansas, e hoje radicado na Itália, onde dirige a associação musical italiana Progetto Odradek. Há sete anos, decidiu fundar a Odradek Records, com sede em sua cidade natal, nos EUA, que se define como uma “cooperativa clássica democrática, sem fins lucrativos e controlada pelos músicos”. A declaração de princípios e uma exposição detalhada da atuação da gravadora estão no site da gravadora

Nunca vi critério mais justo para inclusão de um projeto fonográfico. Anderson diz que sua meta é criar um sistema de avaliação por mérito análogo ao do processo de avaliação no mundo científico. Qualquer músico, garante Anderson, em qualquer local do planeta, pode propor seu demo (é como se chama o CD para exame). O demo é então enviado para um grupo de músicos que já gravou para a Odradek sem identificação alguma de autoria. Ou seja, só conta mesmo a qualidade artística, sem compadrios, conchavos e outros cambalachos tão comuns na vida brasileira em geral – e também, infelizmente, na vida cultural.

Foi o que Vaz Lemes fez pela segunda vez (ele já havia lançado Sonata Brasileira pela Odradek).  Enviou o demo. E Cromo foi aprovado. E você, músico que conseguiu gravar um projeto pessoal, anime-se. Mande seu demo para a Odradek. 

O CD ‘Vozes Mulheres’ está disponível na Loja Clássicos; clique aqui.

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