Com casa cheia, Municipal de São Paulo realiza marcante ‘Réquiem de guerra’ de Britten

por Nelson Rubens Kunze 08/06/2025

Temporada do teatro, além de relevante do ponto de vista artístico, revela o compromisso de dialogar com as questões da contemporaneidade

No ano em que se celebram oito décadas do fim da Segunda Guerra Mundial, o Theatro Municipal de São Paulo incorporou este marco histórico à sua programação – primeiro, em abril, com o concerto Clamor pela paz, e agora, nesta semana, com o Réquiem de guerra, de Benjamin Britten. Nada mais acertado. E um grande sucesso.

Não foi só a plateia que estava lotada no concerto de sexta-feira, dia 6. O palco do Municipal também pareceu pequeno: os corais Lírico e Paulistano e a orquestra – dividida entre um grande agrupamento sinfônico e um conjunto de câmara – mal davam espaço para os três solistas e o pódio do maestro. E ainda tinha o coro infantojuvenil da Escola Municipal de Música que, como está na partitura, apresentou-se fora do palco, no hall do teatro, quando as portas da plateia eram abertas para que o som entrasse na sala. Assim, mais de duzentos artistas interpretaram esta que é uma das principais obras vocal-sinfônicas do século XX, o Réquiem de guerra, de Benjamin Britten (1913-1976). E o resultado foi muito bom.

Britten compôs a obra sob encomenda para a reinauguração, em 1962, da Catedral de Coventry, no Reino Unido, destruída durante a Segunda Guerra Mundial. Humanista e pacifista convicto, o compositor resolveu justapor aos textos litúrgicos em latim da missa de réquiem os poemas de Wilfred Owen, que denunciam o horror, o absurdo e a inutilidade da guerra. O resultado é o lamento da morte intercalado pelo manifesto do poeta. Tudo é altamente impactante. Mas, diferentemente da paixão barroca de Bach ou do Requiem de Mozart, aqui a emoção da transcendência existencial (meio assustadora no caso) convive com a indignação diante do absurdo bélico. 

A obra é construída em seis grandes seções, nas quais atuam três agrupações distintas, ora sozinhas, ora juntas: o coro misto com a soprano solista e a grande orquestra (normalmente representando o ritual sacro), o tenor e o barítono com a orquestra de câmara (como soldados interpretando os poemas de Owen) e o coro infantil. A escrita de Britten, tonal e comunicativa, é de grande inventividade, com combinações vocais e instrumentais pouco usuais que incluem a ampla paleta percussiva e o órgão. E, recorrentemente, sinos, que nos remetem à dimensão do além.

Foi excelente a performance musical conduzida com intensidade e gestos largos pelo maestro Roberto Minczuk, que soube unir com competência todos os componentes em um grande todo orgânico. A orquestra e os coros (preparação de Hernán Arteaga, Maíra Ferreira e Regina Kinjo) responderam com precisão e qualidade. Contribuíram para o sucesso da apresentação os solistas, especialmente a ótima soprano galesa-ucraniana Natalya Romaniw. Mas também o tenor norte-americano Joshua Stewart e o barítono brasileiro Homero Velho tiveram atuações marcantes, em perfeito equilíbrio e sintonia musical.

Entre óperas, concertos, música de câmara e balé, o Theatro Municipal de São Paulo tem se destacado pela qualidade e consistência de sua programação artística. As temporadas dos últimos anos foram muito boas e de alto nível, com propostas instigantes e uma grande adesão do público – a casa está sempre cheia!

Claro, há encenações ousadas, como o recente Don Giovanni de Mozart, mas isso faz parte do cotidiano de um grande teatro cosmopolita e, no debate público, iguala a casa aos centros líricos internacionais, onde as questões da atualidade também sempre estão presentes. 

Temporadas vivas como essas, além de relevantes do ponto de vista artístico, revelam o compromisso de dialogar com as questões da contemporaneidade e assim buscar a legitimidade social de uma atividade cultural complexa, custosa e amplamente subvencionada pelo poder público.

Artistas recebem os aplausos após a apresentação do Réquiem de guerra (Revista CONCERTO)
Artistas recebem os aplausos após a apresentação do Réquiem de guerra (Revista CONCERTO)

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

Link permanente

No último fim de semana, o Theatro Municipal de São Paulo recebeu, enfim, a estreia local de uma das obras mais impactantes do século XX: o War Requiem, do compositor britânico Benjamin Britten (1913–1976). Escrita em 1961 para a consagração da nova Catedral de Coventry — reconstruída após a destruição nazista da original —, a obra articula um poderoso contraponto entre o rito sacro latino e os poemas devastadores de Wilfred Owen, soldado morto na Primeira Guerra Mundial. O resultado é um réquiem de dimensões humanas e metafísicas, uma súplica contra os horrores da guerra e um monumento sonoro à memória das vítimas. Mas nada disso parece ter sensibilizado o regente responsável por esta estreia paulista.

O maestro Roberto Minczuk, titular da Orquestra Sinfônica Municipal, protagonizou uma leitura tão insípida quanto estéril da partitura de Britten. Sua condução foi desprovida de tensão interna, de arcada formal e — mais grave — de qualquer entendimento poético do material. Onde Britten exige rigor e transcendência, Minczuk ofereceu literalismo. Onde há dor, ele trouxe frieza. Onde a música pede escuta e construção coletiva, ele impôs rigidez técnica e descompasso espiritual.

O resultado foi uma noite de ruídos bem-intencionados e intenções mal escutadas. A orquestra esteve aquém de seu potencial, operando no piloto automático. Os três coros envolvidos — Coral Paulistano, Coro Lírico Municipal e o Coro Infantojuvenil da Escola Municipal de Música — fizeram o possível para sustentar a estrutura vocal da obra, mas soaram frequentemente abandonados, sem amparo rítmico ou respiratório. O conjunto de câmara, essencial na alternância entre o íntimo e o grandioso, parecia desconectado do resto da engrenagem. Não houve coesão musical satisfatória.

Entre os solistas vocais, leia-se: o soprano Natalya Romaniw conseguiu imprimir alguma intensidade emocional, com um timbre pleno, quente e penetrante. Já o tenor Joshua Stewart foi um caso à parte: preciso, expressivo, e absolutamente consciente do papel simbólico que ocupa na partitura — sua interpretação foi, sem dúvida, o ponto alto da noite. Aliás, o teatro faria muito bem em convidá-lo para retornar à mesma casa em setembro próximo, na nova produção da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin, para interpretar Sportin’ Life, personagem criado por Ira Gershwin e DuBose Heyward. Se é que, enfim, se pretende oferecer ao público um artista de reais qualidades vocais, musicais e cênicas para aquele papel tão marcante do repertório lírico afro-americano.

Em contraste gritante, o barítono Homero Velho soou completamente inadequado ao papel. Sua voz, de emissão opaca, carece de projeção claramente audível, o que comprometeu sua presença sonora em todos os momentos de destaque. Some-se a isso problemas técnicos recorrentes — ataque vocal impreciso, dificuldade na articulação e instabilidade de afinação — e uma total falta de entrega dramática ao que lhe cabe na partitura. O resultado foi uma performance apagada, desprovida de caráter e dramaticamente desidratada, que destoou nitidamente da qualidade de seus colegas solistas e minou boa parte dos duos com o tenor.

Mais do que uma leitura equivocada, esta estreia revelou um projeto problemático de curadoria artística. O War Requiem foi inserido na temporada do Municipal não por sua relevância estética, mas por sua utilidade institucional: trata-se de uma obra “de peso”, com conotação social e histórica, altamente “citável” em relatórios e discursos — e, portanto, perfeita para alimentar o marketing cultural de uma administração mais preocupada com imagem do que com profundidade.

Essa lógica parece pautar a atuação da Sustenidos Organização Social de Cultura, atual gestora do Theatro, que imprime à programação uma sequência de obras marcadas por discursos de guerra, dor, luto e resistência — não como forma de reflexão, mas como panfleto repetitivo. A escolha de Britten, portanto, diz menos sobre ele e mais sobre a política cultural em curso: uma arte instrumentalizada, cansada de si mesma, travestida de relevância.

Ao final da noite, ficou no ar o desconforto de ter assistido a um gesto vazio: uma partitura sublime sacrificada em nome da vaidade de um maestro que não soube (ou não quis) compreendê-la, e sim de agregar a obra ao curriculum do maestro em epígrafe; e inclusive, de uma instituição que se diz a serviço da arte, mas que parece cada vez mais comprometida apenas consigo mesma.

A música de Britten — lúcida, ética e comovente — merecia mais. Merecia menos Minczuk.

Escrito por Marco Antônio Seta, em 08/6/2025.

Marco Antônio Seta
Jornalista – MTB 61.909
Licenciado em Artes Visuais pela UNICASTELO e diplomado pelo Conservatório "Dr. Carlos de Campos" (Tatuí-SP); formado também pelo Instituto de Educação "Peixoto Gomide", em Itapetininga-SP.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.