Érika Ribeiro, Priscila Bomfim e Petrobras Sinfônica abriram temporada da Sala Cecília Meireles em concerto marcado pela qualidade e dedicação da interpretação
A programação que João Guilherme Ripper montou na Sala Cecília Meireles é tão interessante que este paulistano que não bota os pés na Sala São Paulo desde 2019 cogitou seriamente viajar à Cidade Maravilhosa para conferir a abertura da temporada da sala mais charmosa do Brasil.
Infelizmente, a aceleração selvagem da pandemia desencoraja até mesmo o mais comezinho passeio para uma volta a pé no quarteirão de casa, que dirá viagens intermunicipais. A apresentação, que seria presencial, acabou acontecendo sem a presença de público, e fui obrigado a trocar a aprazível vista dos Arcos da Lapa pela poltrona de casa.
Obviamente, não preciso nem começar a argumentar aqui que a experiência musical ao vivo é insubstituível, por mais avançados que estejam os recursos de reprodução tecnológica. Por outro lado, graças ao streaming, o mundo inteiro pode desfrutar das belezas que desfilam pelo lindo palco batizado em homenagem a uma das principais poetas do Brasil – e quem não pôde assistir ao concerto ao vivo no dia 5, às 15h, tem a ocasião de acompanhá-lo a qualquer instante, pelo YouTube.
Data em que Villa-Lobos sopraria 134 velinhas, 5 de março é, por causa disso, o Dia Nacional da Música Clássica, e Ripper (ele mesmo um compositor de mão cheia) não deixou a ocasião passar em branco, com um repertório de cinco compositores brasileiros: do romantismo tardio de Alexandre Levy (1864-1892) aos contemporâneos Edino Krieger e Ronaldo Miranda, passando pelo nacionalismo do aniversariante do dia e de Camargo Guarnieri (1907-1993).
Ah, e tem mais. Dada a proximidade do Dia da Mulher – 8 de março –, as duas protagonistas da apresentação da Orquestra Petrobras Sinfônica foram do sexo feminino: a maestrina Priscila Bomfim (entrevistada por Luciana Medeiros na edição de março da Revista CONCERTO) e a pianista Érika Ribeiro.
Paulista seduzida pelos encantos da Cidade Maravilhosa, Ribeiro pertence à mesma safra de alunos de Eduardo Monteiro que nos deu os talentos exuberantes de Cristian Budu e Leonardo Hilsdorf. Atua, desde 2013, como professora de piano, recital e música de câmara do Instituto Villa-Lobos (UNIRIO), onde acumula o cargo de chefe do departamento de piano e cordas.
Aos poucos, Ripper vem arrastando-a das lides acadêmicas para a ribalta, fazendo o Rio de Janeiro descobrir o tesouro que arrebatou à Pauliceia: no ano passado, Érika brilhou nos ciclos Beethoven da Sala Cecília Meireles, tanto como parceira de música de câmara da violinista Priscila Ratto, como em sonatas para piano solo. E, agora, foi a escolhida para solar em uma das partituras mais empolgantes de Ronaldo Miranda: o Concertino para piano e orquestra de cordas, de 1986, encomenda da Orquestra de Cordas da UFPE que já mereceu diversas performances e gravações.
Quando ouvi Ribeiro tocar pela primeira vez, no já distante ano de 2007, no concurso Prelúdio, da TV Cultura, fiquei bastante impressionado com o refinamento de sua interpretação de Mozart. Desde então, seu amadurecimento como artista passou muito pela descoberta da música brasileira, e sua identificação cada vez maior com esse universo, acima de rótulos e fronteiras de estilos. Como ela deixou cristalizado em Images of Brazil, álbum em parceria com a violinista norte-americana Francesca Anderegg que transita com igual desenvoltura entre as vertentes “popular” e “erudita” de nossa música, lançado internacionalmente em 2018 pelo selo Naxos.
Pois bem: esse tipo de conhecimento da linguagem brasileira, em diálogo cosmopolita com os estilos internacionais, é exatamente o requerido pela obra de Miranda – um concertino em que o gingado “nacional” convive em perfeita harmonia com inflexões brahmsianas. Tocar de cor, aqui, não foi um detalhe: Érika mostrou-se absolutamente senhora da partitura e imbuída de sua linguagem.
O toque cristalino que fascinava em Mozart e Beethoven funcionou às mil maravilhas no neoclassicismo de Ronaldo, sem abrir mão em momento algum da “brasilidade” da obra. Não é todo dia que ouvimos música brasileira – e contemporânea – tocada com essa mescla de dedicação e excelência técnica. Em um momento em que nosso país se vê relegado ao status de pária internacional pela catástrofe na gestão da pandemia, a chance de nos reconectarmos a ele vem da lembrança daquilo que o Brasil sempre produziu de melhor: suas artes e, em especial, sua música. Música do Brasil. Música para o Brasil.
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Comentários
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Neste momento em que não…
Neste momento em que não conseguimos enxergar o fundo do poço para o Brasil, ouvir música brasileira de qualidade sendo executada por excelentes intérpretes dá uma sobrevida à alma.