William Pereira não estava plenamente satisfeito com o resultado da montagem de O contractador de diamantes estreada no Festival Amazonas de Ópera em 2023. Meses depois, o diretor cênico já confidenciava que a reprise no Theatro Municipal de São Paulo teria algumas adaptações. A primeira revelação, no entanto, chocou boa parte do mundo lírico nacional: a ópera de 1924 de Francisco Mignone seria cantada em português, em vez do original em italiano – fruto da experiência do compositor como estudante na pátria do canto lírico. A tradução foi liderada por Ligiana Costa, que atuou como dramaturgista na produção, com auxílio de Dante Pignatari.
Intervenções desse tipo automaticamente inspiram posições muito rígidas no mundo da música clássica, normalmente no sentido de nunca mexer nas intenções originais do compositor. Só que Pereira e cia tinham ao seu lado pelo menos três argumentos na proposta desta versão, que comemora os 100 anos da obra.
O primeiro era o caráter nacionalista presente em boa parte do enredo, centrado na figura de Felisberto Caldeira Brant, um milionário do Tijuco mineiro (hoje Diamantina) que desafiou a Coroa Portuguesa em 1753. O segundo era a brecha do libreto de Gerolamo Bottoni, uma vez que sempre houve dois números em português na obra: a brasileiríssima Congada e o coro Gavião de Penacho, baseado na canção de Francisco Braga que constava da peça de Affonso Arinos, em que Mignone se inspirou.
Por fim, o terceiro argumento é o de que temos uma partitura reconstruída de uma obra problemática. Coube ao respeitado Roberto Duarte, membro da Academia Brasileira de Música e discípulo de Mignone, o excelente trabalho de pesquisa musicológica para o restauro desta ópera que, por 70 anos, não subiu a nenhum palco brasileiro. Ou seja, ninguém poderia clamar que estávamos condenando uma obra consagrada ao açougue pós-moderno.
Do ponto de vista de quem assistiu, como eu, ao Contractador italiano em Manaus, a produção paulistana ganhou muitos pontos com sua versão em português, ainda que devessem ser consideradas algumas revisões. O maior antagonista da tradução de Ligiana Costa – elogiável em prosódia – é a entrada do "s" final nos plurais, inexistente em italiano. Isso por vezes cria um excesso de sibilações que maculam algumas linhas de canto (pense, por exemplo, no verso "Entre odoreS dormenteS daS floreS", cantado por Cotinha no dueto de amor com Camacho) e até forçando novas sílabas. Seria importante polir as arestas dessa versão em português, porque o resultado é realmente bom: a história de Caldeira Brant faz muito mais sentido quanto cantada em “brasileiro”. E o público se convence de que Mignone sai valorizado e absolve essa work in progress literal.
Mas o maior ganho de Pereira foi o investimento na figura do Mestre Vicente (Mar Oliveira) como timoneiro de um novo prólogo. O tenor negro empunha um violão com habilidade e canta com desenvoltura a modinha Sertaneja, de Chico Bororó, alter ego popular de Mignone. Dotado de uma nova profundidade por escolha de Pereira, cabe ao personagem de Mar pilotar um monólogo escrito por Ligiana que decreta nosso distanciamento da figura de Caldeira Brant (Lício Bruno, barítono): O.K., o protagonista é heroico, enfrentará o Império português personificado pelo magistrado vivido por Douglas Hahn (barítono, em boa figura), mas será sempre um homem branco e rico que, alheio à realidade dos pobres e negros do andar de baixo, tenta inspirá-los a criar um novo Brasil. Embora esse prólogo peque por sua nítida inclinação didática, empregando palavras e referências que acenam ao público redessocialista, Mar tem charme e graça suficientes para desempenhá-lo, dando os elementos que Pereira elevará ao status de narrativa inconsútil.
Num elenco numeroso, Mar e Lício Bruno foram os destaques, ao lado do casal formado pela soprano Rosana Lamosa (Cotinha, filha de Felisberto) e o tenor Giovanni Tristacci (Camacho, um nobre português). Em ótima forma, Lício Bruno, um dos barítonos mais requisitados do país, enfrentou bem uma coleção de notas em fortissimo, marcas de um personagem em constante estado de proclamação, quase wagneriano. Salvo dois momentos em que inverteu palavras do texto, Bruno teve seguramente sua melhor atuação dos últimos dois anos.
Por sua vez, Tristacci e Lamosa tiveram as melodias mais puccinianas de Mignone, em que a orquestra regida por Alessandro Sangiorgi derramou sentimento mediterrâneo em dois duetos de amor com algo de Manon Lescaut, que melhoram a cada audição. Se Tristacci se reafirmou não só como um tenor lírico de agradável timbre metálico, mas também senhor dessa partitura desde os tempos de Manaus, Lamosa, que estreava no papel, soou um pouco mais calculista, concedendo mais volume aos poucos. Foi bem-vindo também o discreto final que Pereira deu aos amantes, que simplesmente desapareciam no segundo ato.
Houve tanta doçura e dinâmica nesses duetos que a esperada Congada não roubou a cena. Realçado pela coreografia de Angelo Madureira, o bailado teve ótimos movimentos e foi bem acompanhado pelo Coro Lírico Municipal preparado por Érica Hindrikson, sem ser especialmente eletrizante. Por fim, há que se elogiar os ótimos figurinos de Olintho Malaquias e o cenário de Giorgia Massetani, que ganhou bela profundidade no terceiro ato com a iluminação de Caetano Vilela, capaz de gerar uma ilusão nacionalista sem fascismos enquanto Caldeira Brant vislumbra seu exílio.
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