Se o encontro de um novo amor acarreta as palpitações e arrebatamentos de toda descoberta, o reencontro com um amor antigo cristaliza e confirma as melhores expectativas suscitadas pelo deslumbramento inicial. Nessa terça-feira, dia 22, na Sala São Paulo, os assinantes da Cultura Artística renovaram seus laços afetivos com a mezzo-soprano norte-americana Joyce Di Donato, que já os encantara, no mesmo teatro, nas temporadas de 2012 e 2014.
Se ela apresentasse o mesmo cardápio das vezes anteriores – recital de canto e piano –, os corações paulistanos já se sentiriam para lá de recompensados. DiDonato resolveu, porém, “apimentar” a relação antiga com novidades. E trouxe ao Brasil o concerto cênico In War & Peace: Harmony through Music (Na guerra e na paz: harmonia através da música), em que cantas árias barrocas, acompanhada pelo grupo de música antiga Il Pomo d’Oro, dirigido por Maksim Emeliánytchev, um multi-instrumentista russo de 31 anos que foi discípulo do mítico Guennádi Rodjéstvenski no Conservatório de Moscou, e hoje chefia a Scottish Chamber Orchestra.
Na Sala São Paulo, ela disse ao público que começou o projeto “uma semana após a eleição de Trump” como presidente dos Estados Unidos, em novembro de 2016; em entrevistas (como a que concedeu a João Luiz Sampaio na edição deste mês da Revista CONCERTO), afirma que foi após os ataques terroristas na França, um ano antes. O que importa é que se trata de uma reflexão sobre a atribulada conjuntura atual: transformada em um CD laureado com o Grammy e o Echo Klassik, a iniciativa mantém um website, no qual os internautas são incitados a responderem a uma pergunta: em meio ao caos, como você encontra a paz?
Gloriosa, sua voz reluz com especial luminosidade no registro agudo, ressoando de forma segura, contudo, também no centro grave
Para quem esteve na apresentação da Sala São Paulo – um bunker de arte em meio a um desolador cenário de degradação social –, a resposta que se impõe é: ouvindo Joyce DiDonato. Aos 50 anos de idade, a mezzo-soprano de Kansas City encontra-se em uma espécie de apogeu técnico e vocal. Gloriosa, sua voz reluz com especial luminosidade no registro agudo, ressoando de forma segura, contudo, também no centro grave. Mestra absoluta dos afetos barrocos, e dos efeitos necessários para produzi-los, comove nas árias mais pungentes (seu Lamento de Dido, de Purcell, foi dilacerante, e quem saiu de casa só para ouvir o hit händeliano Lascia ch’io pianga não se decepcionou), e se desincumbe com fluência das coloraturas mais ornamentadas – como se viu, por exemplo, na ultra-virtuosística Dopo notte, da ópera Ariodante, de Händel, em que a única pessoa da Sala São Paulo que não ficou sem fôlego com a performance de DiDonato foi a própria cantora...
Com direção cênica do alemão Ralf Pleger, design de luz de Henning Blum e design de vídeo de Yousef Iskandar, In War and Peace já foi visto por 2,6 milhões de pessoas, em 44 cidades, de 23 países. DiDonato montou um programa generoso, de nove árias (mais do que um protagonista costuma cantar em uma ópera barroca completa), divididas em duas partes: a primeira é a guerra, a segunda é a paz. Estamos lidando, aqui, com uma artista inteligente, que sabe dosar e mesclar as coisas; portanto, não se deve esperar que a parte da guerra seja constituída apenas de árias de bravura, e, a da paz, só de itens tranquilos e plácidos. E, embora o repertório gire essencialmente em torno do alemão Georg Friedrich Händel (1685-1759), há espaço também para raridades, como Prendi quel ferro, o barbaro, da ópera Andromaca, do italiano Leonardo Leo (1694-1744), ária da qual ela fez a primeira gravação.
Emendando recitativos, árias e trechos instrumentais, cada metade do espetáculo funciona como o ato de uma ópera pocket, com projeções de vídeos, trocas de figurino e maquiagem e interações com o bailarino argentino Manuel Palazzo, que realiza suas evoluções no palco de torso nu (é possível ter uma noção aqui). A ênfase na teatralidade não implica em descuido com a música, como ficou revelado nos diálogos musicais refinados entre solista e orquestra, especialmente o oboé de Roberto de Franceschi, em Pensieri, voi mi tormentate, da Agrippina, de Händel, e a flauta de Anna Fusek (que integra o naipe de segundos violinos da orquestra, e, talvez em homenagem ao público brasileiro, incluiu uma breve menção a Tico-Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu) em Augelletti, che cantate, de Rinaldo, também de Händel. Glórias de uma orquestra refinada, que teve Emeliánytchev não apenas dirigindo ao cravo, como tocando corneto em Tristis est animam mea, de Gesualdo, e que soube construir um clima mágico no único item contemporâneo do programa: Da pacem, Domine, do estoniano Arvo Pärt.
Chamando o violinista brasileiro radicado em Nova York Edson Scheid para servir de intérprete, DiDonato, ao final do programa, explicou o projeto e emendou, como bis, a canção Morgen, de Richard Strauss (1864-1949). Então, tanto a cantora quanto a spalla do grupo, a búlgara Zefira Valova, empregaram um vibrato que não se ouvira ao longo do programa inteiro; afinal de contas, tratava-se Strauss. Estilo barroco nas obras barrocas, estilo romântico tardio na peça romântica tardia. Com uma textura translúcida, a execução foi tão diáfana que até dava vontade de acreditar, voltando do concerto, que, apesar de todos os pesares, os versos de John Henry Mackay musicados pelo compositor alemão se revelariam verdadeiros, e que Morgen wird die Sonne wieder scheinen (Amanhã o sol voltará a brilhar).
A mezzo soprano Joyce DiDonato volta a apresentar nesta quarta-feira, dia 23, o espetáculo ‘In War & Peace: Harmony through Music’ na Sala São Paulo; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO
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