A ópera que a pandemia merece

Em 2020, o Festival Amazonas de Ópera, em Manaus, preparava-se para uma edição bastante ambiciosa, incluindo uma montagem de Peter Grimes, de Benjamin Britten, quando a Terra parou. A pandemia impediu não apenas a realização de Grimes, de qualquer montagem de ópera, ou do festival, como ainda converteu Manaus em um de seus epicentros, colocando o nome da capital amazônica em manchetes que comoveram todo o planeta.

Um ano depois, a pandemia continua, selvagem e impiedosa – e o festival, a ópera, as artes, a cultura, o saber e a ciência teimam em prosseguir, apesar da obscurantista campanha desencadeada contra eles. Se Manaus foi epicentro da pandemia, converteu-se, valentemente, no epicentro da discussão artística sobre a doença e seus impactos. O Festival Amazonas de Ópera assumiu o formato digital, e seu diretor artístico, Luiz Fernando Malheiro, encomendou três óperas a jovens compositores. Afinal, para um assunto inédito, impunham-se títulos inéditos, compostos durante a pandemia, por gente diretamente afetada pela pandemia.

E o primeiro deles, Três minutos de Sol, com música de Leonardo Martinelli e libreto de João Luiz Sampaio, abriu o festival no último domingo, dia 6, à noite – e pode ser assistido por quem perdeu (ou deseja revisitar) essa ocasião histórica e inesquecível. Se ninguém merece uma pandemia como a atual, a ópera que a pandemia atual merece é essa.

 

Ex-colegas de Revista CONCERTO, Martinelli e Sampaio estrearam sua parceria com as Canções do Mendigo, ciclo para baixo solista, clarinete, viola e piano, inspirado no romance O mendigo que sabia de cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira. Estreadas na CPFL, em Campinas, em 2014, sob os auspícios de João Marcos Coelho (assista aqui), as canções foram ainda apresentadas, em São Paulo, na Sala do Conservatório da Praça das Artes, com direção cênica de Leo Lama, e no Theatro São Pedro – quando o responsável pelos destinos da casa era o mesmo Malheiro que agora encarregou ambos de comporem Três minutos de Sol.

Martinelli foi, ainda, responsável pela última ópera encenada em São Paulo antes da pandemia se abater sobre a cidade – O Peru de Natal, com libreto de Jorge Coli, inspirada em conto homônimo de Mário de Andrade, no Teatro São Pedro, em dezembro de 2019.

 

Em Três minutos de Sol, a reflexão sobre a pandemia está contida não apenas na temática da ópera, mas em seu próprio processo de criação e difusão. Como podemos ler na matéria de capa da edição de junho da Revista CONCERTO, assinada por Luciana Medeiros e Eduardo Fradkin, as três óperas que compõem a edição deste ano do FAO “foram ensaiadas remotamente, gravadas pela Amazonas Filarmônica em Manaus e cantadas num estúdio em São Paulo. Numa segunda etapa, foram filmadas – uma delas é animação – e editadas como produção cinematográfica”. Assim, “os diretores ensaiaram à distância com os cantores, que filmaram as cenas em locações, dublando a si mesmos”.

Pois, no mesmo artigo, Malheiro afirma que “não quero quadradinhos” – referindo-se às telas divididas em “janelinhas” que têm marcado o cotidiano da comunicação pandêmica. O resultado é trabalhoso – mas plasticamente convincente, graças ao bom gosto da diretora Julianna Santos, que recebeu o Prêmio CONCERTO em 2019 pela realização de Alma, de Cláudio Santoro, no FAO, e vem se firmando como um dos nomes mais interessantes da área.

Dedicada à memória de Lauro Machado Coelho (1944-2018) – principal crítico de ópera do Brasil em seu tempo, e influência formadora e decisiva nas carreiras de Martinelli, Sampaio e Malheiro –, Três minutos de Sol aborda um ménage à trois em tempos de distanciamento social, envolvendo Laura (não, o nome da protagonista não é casual), cantada pela soprano Lina Mendes; Marcos, encarnado pelo barítono Vitor Mascarenhas; e Duda, personagem deliberadamente andrógino, que pode ser interpretado por intérprete do sexo masculino ou feminino, e que aqui foi vivido pelo contratenor Sávio Faschét.

Em artigos no site da Revista CONCERTO, Sampaio andou refletindo bastante sobre a ópera em tempos de pandemia, e seu libreto para Três minutos de Sol é a cristalização dessas reflexões. Mestre dos não-ditos e desinteligências amorosas, Sampaio urdiu um texto com uma mescla engenhosa de registros, em que o coloquial pode descer a linguagens de baixo calão e, ao mesmo tempo, incluir citações bem escolhidas e oportunamente inseridas de poetas como o mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e o alemão Joseph Freiherr von Eichendorff (1788-1857).

Ele escapa do erro mais comum do libretista iniciante, que seria encher o texto de palavras, como se faria em uma peça de teatro de prosa. Seu libreto não apenas inspira, como deixa espaço para que respire a música de Leonardo Martinelli, a direção de cena de Santos e a atuação dos cantores. Estes abraçaram seus papéis com intensidade, e souberam encarar o desafio das câmaras, nada intimidados pelo desafio da proximidade dos enquadramentos, expondo detalhes de seus rostos e corpos que normalmente não se deixam ver em um teatro de ópera. Mascarenhas e Faschét estiveram igualmente convincentes, mas não se pode deixar de conferir um destaque especial a Mendes, que se firma como uma das mais versáteis cantoras brasileiras do momento.

Já a música de Martinelli amadurece, aqui, a solidez das relações entre escrita vocal e texto que já se ouvia nas Canções do Mendigo, bem como o domínio do tempo dramático de O Peru de Natal. Ele lida com uma formação de câmara (flauta, clarinete, fagote, trompa, piano, violino, viola e violoncelo, músicos da Amazonas Filarmônica conduzidos com segurança por Otávio Simões), e um libreto simétrico: três cenas de dez minutos de duração cada, divididas em três números. Inspiradíssima, sua escrita inclui, ao final da primeira cena, uma sessão de sexting escrita com uma perícia que, para o meu gosto, faz a célebre passagem de sexo em Powder Her Face, de Thomas Adès, soar pueril e ingênua em seu grafismo.

Vale lembrar que Martinelli compôs a primeira ópera encomendada na história do Theatro Municipal de São Paulo – Navalha na carne, a partir da peça homônima de Plínio Marcos. Também girando em torno de um trio de protagonistas, explorando latências sexuais e um registro verbal que igualmente inclui a gíria e o palavrão, Navalha deveria ter estreado em 2020, mas foi atropelada pela pandemia. Depois de Três minutos de Sol, deu muita vontade de ouvir a música de Martinelli para a criação de um dos maiores dramaturgos que o Brasil já teve.

Conseguiremos algum dia?

Leia também
Reportagem
Com O corvo, ópera chega à animação, por Luciana Medeiros
Notícias Theatro São Pedro anuncia três óperas para o segundo semestre
Notícias Prepare-se: onze concertos e óperas para ver ao vivo ou na internet
Revista CONCERTO Ópera na pandemia, por Luciana Medeiros e Eduardo Fradkin

Lina Mendes em cena de 'Três minutos de Sol' [Divulgação]
Lina Mendes em cena de 'Três minutos de Sol' [Divulgação]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.