Otto Klemperer, 50 anos depois: um tributo distorcido

por João Marcos Coelho 06/07/2023

Nenhum artista tem controle sobre o modo como será lembrado depois de sua morte. O exemplo mais recente é o do maestro Otto Klemperer. Quando morreu, no dia 6 de julho de 1973, há cinquenta anos, foi saudado como um dos grandes batalhadores pela música contemporânea. Sua imagem era a do maestro mais atuante no maravilhoso período que viveram as artes – e a música – durante a chamada República de Weimar, entre 1919 e 1933.

Ele foi responsável por cinco anos decisivos pela Kroll Oper, em Berlim, entre 1927 e 1931: montou óperas de novos compositores como Paul Hindemith e Kurt Weill, realizou temporadas memoráveis de concertos com a orquestra da Kroll, regendo muitas obras de Schoenberg e Stravinsky, dois compositores de sua predileção até o final da vida. E olhem que a Kroll Oper manteve-se graças  à Volksbühne, associação cultural operária. Ela distribuía ao menos metade da lotação a seus associados. Ironia: estes queriam assistir às grandes sinfonias e concertos românticos e as óperas mais populares do repertório. Um descompasso que provocou o final desta incrível experiência musical iluminista.

Fez isso numa cidade em que outras duas estrelas, Wilhelm Furtwängler e Bruno Walter, também dirigiam orquestras e mantinham temporadas de concertos. Mas ninguém brilhou como Klemperer naqueles anos dourados, à beira do abismo nazista. Ele foi o músico-símbolo daquele “apocalipse glorioso”, linda e justa expressão para qualificar a efervescência alucinada, cujo mantra era “carpe diem”, fazer tudo naquele momento sintomaticamente dificílimo em termos econômicos e políticos. Brecht, outra figura-chave de Weimar, almoçou e jantou gratuitamente durante anos com uma nota de 100 dólares. Nenhum restaurante tinha troco em marcos – precisaria de um carrinho de mão para trazer a montanha de papel-moeda alemã.

Se você me perguntasse qual a melhor maneira de celebrar o centenário de Beethoven, eu te responderia: não tocar sua música durante um ano, disse o maestro em 1927

Voltemos a Klemperer. Um exemplo matador de sua militância pela música nova. Em 1927, ano em que o mundo rememorava – e comemorava muito – o centenário de morte de Beethoven, Klemperer declarou o seguinte numa entrevista de 19 de fevereiro: “Não acredito que Beethoven exerça alguma influência sobre os compositores atuais. Ele era um romântico, ele era subjetivo. Estes são objetivos. Estes retornam a Bach”. E arrematou: “Se você me perguntasse qual a melhor maneira de celebrar o centenário de Beethoven, eu te responderia: não tocar sua música durante um ano. Ela é tocada demais. Todo mundo toca Beethoven e ninguém quer escutar os compositores atuais. Beethoven tornou-se um ótimo negócio (...) Não sei por que [a vida musical] insiste tanto em escutar a música dos mortos. As pessoas recusam-se a ouvir as obras dos vivos (...) Eu adoraria falar com você sobre Hindemith. Mas você só quer ouvir falar de Beethoven. Beethoven é único. E no entanto, não posso acrescentar nada ao que ele ‘disse’. Só posso reger suas sinfonias. Quanto a Hindemith, quem sabe eu poderia contribuir para você compreender sua música”.

Pois bem. Para lembrar os 50 anos de sua morte em 6 de julho de 1973, aos 88 anos, a Warner lançou um mamute digital intitulado “Legacy of a Legend”, Legado de uma Lenda. O Spotify indica 100 músicas – na verdade movimentos – que duram 11 horas. O problema é que são basicamente gravações remixadas de sua última década de vida que constroem um retrato distorcido do maestro nascido em Breslávia, na Polônia, em 1885, em família judaica. 

Explico: São onze horas que dão bem o retrato do seu estilo de reger, na verdade uma estética que combina o rigor e a obediência à partitura com a busca obsessiva de uma objetividade que vai de encontro – e de encontro, sabemos, quer dizer contra – aos estilos românticos então muito cultuados no mundo musical, representado por figuras como Bruno Walter e Arturo Toscanini. Com o primeiro, Klemperer teve em comum a convivência com Gustav Mahler. Mas enquanto Walter abraçou a postura romântica do mestre, Klemperer seguiu-o basicamente como regente: e olhem que Mahler era obsessivo em sua busca da perfeição e do rigor interpretativo. Postura que, aliás, Klemperer comungou com Toscanini – o italiano também fazia alarde de sua obsessão com o rigor.

Em suma, o Klemperer que emerge destas onze horas de música da mais alta qualidade é o intérprete canônico de um repertório absolutamente canônico – os quatro grandes “Bs” da música germânica Bach, Beethoven, Brahms e Bruckner;  Haydn, Mozart, Weber,  Mendelssohn, Schubert, Schumann, Liszt, Dvorak, Tchaikovsky, Mahler e Richard Strauss. Destes, seus deuses amados eram Bach, Bruckner, e a Segunda sinfonia de Mahler. Entre os músicos e cantoras e cantores, figuras estelares, como Janet Baker e Elisabeth Schwarzkopf, Christa Ludiwg, Hans Hotter – e a pianista Annie Fischer e o violinista David Oistrakh.

Dietrich Fischer-Dieskau acabara de participar de um concerto regido por Klemperer. E aproveitou para convidar o maestro para assisti-lo reger um concerto dois dias depois. Sua resposta foi: Não posso. Na sexta canto o Winterreise.

Claro que vale muito a pena ouvi-lo na fase final da carreira. Os tempos, que já eram lentos, ralentaram ainda mais. Um só exemplo: no “Molto Allegro” inicial da célebre Sinfonia nº 40 em sol menor, K. 550, de Mozart, o andamento tem pouco a ver com Allegro molto, é bem mais lento. Klemperer faz uma leitura estrutural, objetiva, retira os acentos românticos. Neste sentido, manteve-se fiel até o final da vida ao mantra dos anos 1920, “o retorno à ordem”, à objetividade. Outro exemplo: os tempos lentos aplicados à Suíte orquestral nº 3, BWV 1068, de Bach (quase não se reconhece a giga desta suíte, tamanha a lentidão).

Sobre Paul Hindemith, ausente deste lançamento: ele só gostava de seu período weimariano – quando estreou inclusive suas óperas – e execrava tudo que fez no período norte-americano. Aliás, ele mesmo, que viveu nos Estados Unidos fugindo do nazismo, jamais se encaixou numa vida musical que lhe era atavicamente alheia, distante. Regada a “bu$ine$$” demais para seu gosto.

Stravinsky foi uma de suas maiores paixões – ele indicava o russo e Schoenberg como os maiores do seu tempo. E observava que, do expressionismo vienense, só ficava mesmo com Schoenberg. Pois de Stravinsky, seu dileto amigo e parceiro em tantos concertos e gravações, o mamute da Warner só traz Pulcinella.  E nada de Schoenberg.

Faltou dizer que Klemperer estudou composição e regência com Hans Pfitzner. Um dos casos mais hilários de seu humor ferino aconteceu com Dietrich Fischer-Dieskau (cito de memória). Ele acabara de participar de um concerto regido por Klemperer. E aproveitou para convidar o maestro para assisti-lo reger um concerto dois dias depois. Sua resposta foi: “Não posso. Na sexta canto o Winterreise”.

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O maestro Otto Klemperer [Divulgação/WarnerClassics]
O maestro Otto Klemperer [Divulgação/WarnerClassics]

 

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