Piotr Beczala: voz, coloridos e intensidade dramática

Acostumada a trazer a São Paulo os maiores destaques da cena musical erudita internacional, a Sociedade de Cultura Artística não decepcionou na abertura da temporada em que festeja seus 110 anos. Para uma retomada depois de dois anos de congelamento de atividades presenciais devido à pandemia, não podia haver melhor ocasião do que o empolgante recital do tenor polonês Piotr Beczala (pronuncia-se “betcháua), no dia 3 de maio.

Eu mesmo não pisava na Sala São Paulo desde 2019, e o clima era de burburinho e excitação. Gente de máscara se abraçando, gente sem máscara resmungando contra a obrigatoriedade de comprovante de vacinação, gente que parecia ter se esquecido da etiqueta de comportamento de concertos e falava em voz alta durante as peças, como se estivesse assistindo a um streaming em casa, gente com celular registrando cada minuto do concerto – e a TV Cultura, felizmente, fazendo um registro profissional da ocasião histórica: afinal, não é todo dia que um astro desta magnitude pisa em nossos palcos, no auge de suas forças.

Tivera eu a fortuna de ouvir um deslumbrante recital de Beczala no Festival de Salzburgo, em 2014, e minha impressão favorável de oito anos atrás só fez se confirmar. Beczala é dotado de um encantador, puro e rico em harmônicos timbre de tenor lírico, com projeção, volume, “metal” e “ponta” capazes de “furar” a mais espessa das tessituras orquestrais. 

Uma potência que não exclui o refinamento – muito pelo contrário. Ele emprestou muita graça aos três itens do italiano Paolo Tosti (1846-1916) – L’ultima canzone, Chi sei tu che mi parli e Ideale – e, sobretudo, às quatro canções do russo Serguei Rachmaninov (1873-1943): Sonho, sobre texto de Sologub; Lilases, sobre versos de Bekétova; a arrebatadora Águas de Primavera, com poema de Tiúttchev; e a mais bela de todas, a nostálgica e evocativa Canção da Geórgia (Não cantes, oh bela, diante de mim), com palavras do pai fundador da literatura russa moderna, Púchkin.

A música de Rachmaninov brota dos inspirados versos que ele escolheu, e o fraseado de Beczala parece respirar junto com eles. De dicção claríssima e pronúncia impecável em todos os idiomas em que cantou (não tenho condições de julgar seu polonês, mas não creio que ele fosse fracassar justo na língua mãe), Beczala parece deixar que o texto inspire suas variegadas escolhas vocais e dramáticas. No bloco Rachmaninov, especificamente, veio também a hora da verdade para seu acompanhador, o alemão Camillo Radicke, desincumbindo-se com brilho da parte escrita por um dos maiores pianistas de todos os tempos.

Também à ópera Beczala emprestou todo seu refinamento. Possivelmente não haja hoje melhor intérprete de Lênski do que ele, como ficou claro em Kudá, kudá, vy udalílis, da ópera Ievguêni Oniéguin, de Tchaikóvski. Beczala foi igualmente sedutor no repertório francês (Ah, lève toi, soleil, do Romeu e Julieta, de Gounod, e Pourquoi me réveiller, do Werther, de Massenet, luxuosíssimo bis). E teve ainda o bom gosto de trazer o repertório pátrio, com o Recitativo e ária do carrilhão da ópera Straszny Dwór (A casa assombrada, 1865), de Stanislaw Moniuszko (1819-1872).

Uma voz possante pode ser mais difícil de manejar do que uma mais delicada, e seria compreensível caso Beczala se enamorasse das belezas de seu timbre e simplesmente se limitasse a despejar uma cascata de sons formosos. Mas não é o caso, e ele demonstrou cabalmente que intensidade dramática não é sinônimo de simplesmente sair berrando o papel, atropelando fraseado e dinâmica.

Assim, foi um prazer ouvi-lo matizar incansavelmente Quando le sere al placido, da Luisa Miller, de Verdi, e Ah, si, ben mio, de Il trovatore, do mesmo compositor. Tudo que ele faz parece tão natural e fácil que, por vezes, nos esquecemos das dificuldades desse repertório – Beczala nos lembrou de que é um ser humano, e não uma máquina de cantar, em Di tu se fedele il fluto m’aspetta, de Un ballo in maschera, de Verdi, onde seu registro grave não soou da mesma forma de todo o resto da apresentação.

Nada que tenha empanado, de qualquer forma, uma ocasião memorável. Devemos nos lembrar que, ao interpretar uma ópera completa, um tenor por vezes canta umas duas árias – e com um ato de intervalo entre elas. Porém, na terça-feira, dia 3, depois disso tudo (e ainda de Questa o quella, do Rigoletto, de Verdi; da Mattinata, de Leoncavallo; e de três canções de Stefano Donaudy), ele encerrou o recital com as duas árias da Tosca, de Puccini: Recondita armonia e E lucevan le stelle. Não, respectivamente, no primeiro e terceiro atos, como aconteceria em uma apresentação da ópera, mas em seguida. São itens que todo fã de canto lírico conhece de cor, já ouviu inúmeras vezes, e tem suas interpretações de referência. Mas que, com Beczala, adquiriram o renovado frescor de uma descoberta. Um artista desse quilate está fadado a imprimir sua marca em tudo que resolver cantar.

P.S.: Beczala canta novamente na Sala São Paulo no dia 9, na série da Cultura Artística, e ainda no Rio de Janeiro, dia 12, na série da Dellarte, no Theatro Municipal. Se o preço do ingresso couber no orçamento, não perca! [Veja mais detalhes aqui]

Camillo Radicke e Piotr Beczala durante recital na Sala São Paulo no dia 3 de maio [Revista CONCERTO]
Camillo Radicke e Piotr Beczala durante recital na Sala São Paulo no dia 3 de maio [Divulgação/CaueDiniz/FacebookCulturaArtistica]]

 

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