Um ‘Castelo do Barba Azul’ aterrorizante em leitura da Osesp

por João Luiz Sampaio 09/04/2023

Há bons motivos para abrir um programa que tem como destaque O castelo de Barba Azul, de Bartók, com Vysehrad, primeiro poema sinfônico de Minha Pátria, de Smetana. A peça evoca a pequena cidade às margens do Rio Moldava onde um castelo foi erguido no século X, tornando-se por um período sede da monarquia boêmia. A paisagem medieval, o castelo, tudo parece em sintonia com a obra de Bartók.

Mas isso apenas no papel. Pois, na prática, tocar o poema sinfônico antes da ópera, como fez a Osesp nos concertos da última semana, provou-se pouco eficaz, desnecessário mesmo. São linguagens musicais distintas, que pouco conversam entre si. E, em comparação ao que estava por vir, a leitura da orquestra e do maestro Richard Armstrong foi na melhor das hipóteses apática, superficial.

E o castelo? Bem, o de Bartók não é feito exatamente de pedras – e não são necessários mais do que alguns compassos para que sua música ofereça a atmosfera dramática e musical de uma obra impactante, que evoca o espírito artístico e de ideias do início do século XX, marcado, entre outras coisas, pela descoberta do inconsciente. Compassos em que a Osesp já deu amostras da qualidade da interpretação que viria a seguir. 

O trabalho das cordas na primeira porta; os metais e as madeiras na segunda; o modo como a orquestra introduz as aterrorizantes cores escuras quando, na sexta porta, o lago branco revela-se feito de lágrimas, em um ondular em que o movimento das águas se torna, na verdade, um transe devastador; toda a passagem que leva ao clímax da abertura da sétima porta – não foram poucos os grandes momentos do grupo.

Mas, na récita de sábado, foi na construção de um todo orgânico, em que a música evocativa das portas se combina com a transição entre elas, em um processo de tensão crescente, que a leitura da Osesp e de Armstrong se revelou particularmente inteligente do ponto de vista dramático, dando sentido teatral ao espetáculo.

 

A mezzo soprano britânica Karen Cargill interpretou Judith. A primeira porta ainda não havia sido aberta e ela já demonstrara a capacidade expressiva de uma voz brilhante nos agudos tanto quanto generosa nas regiões mais graves. Sua Judith parece carregar, desde o início, um misto de lirismo e antecipação da tragédia – o que reservou a ela, na virada que a quinta porta sugere, com suas nuvens manchadas de sangue, possibilidades ainda mais vastas de interpretação.

O barítono David Stout, por sua vez, construiu Barba Azul a partir do signo do comedimento. Mesmo nos momentos mais expansivos, os alertas a Judith ou a evocação de suas três primeiras esposas, manteve-se fiel ao sentido do personagem: revelando tanto quanto escondendo motivações que, afinal, jamais serão expostas por completo.

A última ópera que Armstrong regeu à frente da Osesp foi O cavaleiro da rosa, de Strauss, em 2009. De lá para cá, não foi apenas ele que, na Sala São Paulo, esteve longe da ópera. Com algumas raras exceções, um ou outro ato de obras célebres, o gênero ficou à margem das temporadas do grupo na última década.

Não é preciso lembrar que grandes orquestras, como a Filarmônica de Berlim, têm a ópera como constante de suas programações. Basta acreditar no que disse o próprio Armstrong em entrevista na semana passada: “Os benefícios do contato com esse repertório são enormes. Ele exige dos músicos enorme flexibilidade para entender a música do ponto de vista do teatro. Não é algo corriqueiro".

Como novo diretor musical, a bola está no campo de Thierry Fischer.

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Karen Cargill, Richard Armstrong e David Stout na apresentação de sexta-feira [Reprodução/YouTube]
Karen Cargill, Richard Armstrong e David Stout na apresentação de sexta-feira [Reprodução/YouTube]

 

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