Éden é, nos textos bíblicos, o paraíso. Por extensão, é também qualquer lugar que a ele se assemelhe: calmo, agradável, perfeito. A palavra foi a escolhida pela mezzo-soprano Joyce DiDonato para intitular o espetáculo com o qual tem viajado pelo mundo desde 2022 e que na última quarta-feira, pela temporada internacional da Tucca, completou sua 45º apresentação, na Sala São Paulo.
“Ainda não sei se é simplesmente o tempo em que vivemos ou se a ‘Grande Pausa’ [a pandemia de Covid-19] por si só deu origem a questões cada vez mais profundas”, ela reflete no texto de programa. O espetáculo parte, então de The unanswered question (A pergunta sem resposta), de Charles Ives, com o grupo Il Pomo D’Oro no palco e a cantora andando na plateia.
“Há uma linguagem sem pontos de interrogação. Você pode lê-la nos anéis das árvores. E no vento e no rio. E no som dos pássaros cantando. A canção deles mudou desde que a cantaram uma vez no Éden? [...] Mas estou cheio de nada além de perguntas”, ela canta na sequência, em texto de Gene Scheer para a canção The first morning of the world, feita especialmente para o projeto pela compositora Rachel Portman.
Éden é, portanto, a forma que a cantora norte-americana encontrou para buscar respostas às suas inquietações. “Veja, sou uma solucionadora de problemas, uma sonhadora e – sim – sou uma otimista beligerante que acredita não apenas no incrível poder de superação do espírito humano, mas, a cada dia que passa, confio mais no equilíbrio perfeito, no mistério surpreendente e na força orientadora do mundo natural que nos rodeia”, ela escreve.
O espetáculo traz, em uma hora e meia, um programa com peças que vão do barroco ao contemporâneo, escolhidas a partir de suas relações com a natureza e das reflexões que trazem. Encadeadas, contam uma história: a do desafio que se coloca às gerações atuais na preservação da natureza e, em última instância, da vida humana na Terra. Pensado nos mínimos detalhes, Éden tem direção cênica de Marie Lambert-Le Bihan e inspirada iluminação de John Torres.
Joyce DiDonato e Il Pomo D’Oro estiveram no Brasil em 2019, pela Cultura Artística, com um outro projeto da cantora, “Na guerra e na paz”. Nele, ela também procurava refletir, pela música, sobre os tenebrosos caminhos que o mundo ia tomando. Desta vez, Il Pomo D’Oro, excelente orquestra de câmara fundada em 2012, esteve sob a liderança do brasileiro Edson Scheid. Foi muito bom poder conferir ao vivo a performance desse excelente violinista, há anos radicado no exterior, e que dirigiu o grupo em interpretações esfuziantes.
Os predicados de DiDonato são imensos e bastante conhecidos. Aos 55 anos, é uma cantora como poucas, com bela voz, desenvoltura como atriz e perfeito domínio de seu instrumento. Ela gosta de projetos ambiciosos e nisto se parece com outra extraordinária mezzo-soprano, a italiana Cecilia Bartoli. Mas, se Bartoli mergulha nos escaninhos da história da música, DiDonato, por sua vez, utiliza a voz como um instrumento para, por meio da música, chegar a questões que estão além da sala de concerto.
É interessante, por isto mesmo, olhar um pouco para a trajetória que a trouxe até Éden. Joyce DiDonato é uma artista que está no topo da carreira e que poderia se contentar “apenas” em protagonizar montagens operísticas nas mais importantes casas do mundo ou em se apresentar em concertos e recitais na Staatsoper de Berlim, no Musikverein de Viena ou no Carnegie Hall (ela esteve em todas essas salas na última temporada). Em 2015, ela participou de outra iniciativa surpreendente ao aceitar o convite do Carnegie Hall e visitar a penitenciária de segurança máxima Sing Sing para conversar, ensaiar e apresentar músicas escritas para ela pelos detentos.
Essa trajetória certamente tem a ver com suas raízes. Conforme DiDonato contou ao público da Sala São Paulo, ela passou a infância cantando em corais. Nascida numa família numerosa no Kansas, seu pai regia o coro da igreja enquanto sua mãe tocava o órgão. Ela esperava se tornar professora de música e lutou contra sua consciência quando uma carreira profissional apareceu no horizonte. Numa entrevista, ela contou como tudo se resolveu: “Meus pais eram católicos muito rigorosos e observantes. Era meu dever na vida encontrar uma vocação e servir a Deus. Eu achava que minha vocação era ensinar. Eu via pobreza, abuso e necessidade nas escolas. Como poderia combinar isso com a enorme diversão, o egoísmo de se apresentar? Meu pai, de quem eu era muito próxima, disse algo sábio: ‘Sabe, Joyce, há mais de uma maneira de ensinar’”.
Éden teve um primeiro encerramento quando DiDonato cantou o segundo dos Rückert-Lieder de Mahler programado para a noite. Em Ich bin der Welt abhanden gekommen (Eu estou perdido para o mundo) o poeta afirma com resignação que morreu para o mundo, e refugia-se sozinho “em meu céu, em meu amor, em minha música”. Mas, se a mensagem é de desistência desse mundo, haveria alguma solução?
Ao que parece, ela está nas crianças. Quase uma centena delas, integrantes do Coro Infantil da Osesp e do Coral Heliópolis, se juntaram ao espetáculo para cantar a natureza, a solidariedade e a esperança. A mensagem das crianças foi uma das sementes que a artista procurou disseminar em seu espetáculo – a outra foi distribuída junto com o programa e pode ser plantada. Com parte dos ingressos a preços populares, Éden lotou a Sala São Paulo e foi talvez o ponto culminante da ótima temporada que a Tucca preparou para este ano.
Depois de conectar o público à sua reflexão amorosa sobre a natureza, Joyce DiDonato encerrou a noite reafirmando o diálogo entre o repertório antigo e o mundo contemporâneo com a comovente Ombra mai fu (Nunca houve uma sombra), uma das árias mais conhecidas de Händel. “Estou tentando equilibrar ativismo e alegria”, ela já disse uma vez, talvez dando a senha sobre o que significa ser uma artista lírica de primeira grandeza no século XXI.
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