Uma outra 'Paixão'

Paixão de Sexta-Feira Santa não precisa ser, obrigatoriamente, de Bach. No Theatro Municipal de São Paulo, Maíra Ferreira dirigiu seu Coral Paulistano no dia 7 de abril em uma bela execução de uma Paixão pouco feita por aqui: a de Arvo Pärt.

Obviamente, não se trata aqui de “cancelar” o gênio Johann Sebastian Bach (1685-1750), nem de negar o valor intrínseco de suas paixões segundo São Mateus e São João. Vale a pena retornar sempre a esses monumentos, cuja música é tão poderosa que consegue periodicamente superar o vibrato pucciniano, orquestração bruckneriana e tempos celibidachianos a que é sistematicamente submetida em nossas latitudes.

Enfim, Bach é Bach, mas alguma variedade na eterna mesmice de nossas programações é sempre bem-vinda. Embora datada de 1982 – portanto, mais velha do que vários dos musicistas que a interpretaram no palco – , a Paixão segundo São João, de Pärt, pode ser considerada uma obra contemporânea.

Aos 87 anos, Pärt é um dos mais respeitados compositores da atualidade. Ele nasceu na Estônia, quando a pequena república báltica, contra a vontade, integrava a URSS – e boa parte de sua produção pode ser explicada como resistência à dominação estrangeira e afirmação de uma voz própria. Inicialmente, praticou um vanguardismo mal visto em tempos de “realismo socialista”; teve uma crise de silêncio, para emergir, em 1977, com o estilo que o tornou mundialmente conhecido: tintinnabuli (do latim tintinnabulum, sininho). Muito mais “acessível”, a nova prática de Pärt, contudo, era igualmente incômoda para as autoridades, devido a seu fundo religioso – já houve quem, com certa razão, qualificasse o estilo do compositor de “minimalismo sacro”.

Em 1980, ele foi forçado a emigrar para Viena. Em seguida, radicou-se em Berlim. Um dos primeiros frutos de sua atividade no exílio foi aquela que se tornou uma das partituras mais longas deste miniaturista por vocação: Passio Domini Nostri Jesu Christi secundum Joannem (assim mesmo, em latim), encomenda da Rádio Bávara.

Embora suas referências sejam da música antiga, não poderíamos imaginar contraste maior para com as paixões bachianas. Em Bach, o texto desencadeia toda uma exuberante dramaturgia de afetos, com luxuriantes e variegadas combinações vocais e instrumentais.

Em Pärt, tudo é de um ascetismo limítrofe à aridez. O conjunto instrumental é diminuto: violino, oboé, violoncelo, fagote e órgão. Seu registro é arcaizante, mas remete a uma época anterior ao Barroco bachiano: os tempos da monofonia. A relação com o texto é regida não pelo conteúdo, como em Bach, mas pela forma: a duração das palavras influi nos valores das notas. Também o ambiente harmônico é dos mais austeros – criando contraste apenas no coral final, em que tudo que foi reprimido ao longo da partitura recebe permissão de aflorar e, como se uma janela se abrisse em um recinto claustrofóbico, o gris é inundado por uma inesperada paleta de cores.

Assim, a impressão geral é de um texto bíblico recitado como um rosário, de forma monocórdia, com o sentido do texto cedendo a primazia à pura repetição, à reiteração – a uma repetição criadora de um ambiente hipnótico, induzindo ao transe.

Não é fácil recriar, em uma sala com dimensões de uma catedral, uma atmosfera sonora mais adequada a uma capela intimista e reverberante. Mas Maíra Ferreira e seus comandados conseguiram colocar “no clima” o público de um Municipal lotado – agradável surpresa, levando-se em conta o ineditismo da peça, o esvaziamento da cidade no feriado, e a ocorrência de concertos simultâneos em outros locais. 

O Paulistano não apenas deu conta de sua parte, como ainda forneceu os quatro cantores dentre os quais Pärt divide o texto do Evangelista: Luciana Crepaldi (soprano), Gilzane Castellan (contralto), Marcus Loureiro (tenor) e Ademir Costa (baixo), com atuação equilibrada. Também membro do grupo é o tenor Pedro Vaccari, de belo timbre, e caracterização algo suave do papel de Pilatos: com ele, vemos mais o homem que seguidamente duvida da culpabilidade de Cristo do que o mandatário romano que o envia à Cruz.

Mas o grande destaque da noite foi o Jesus de Michel de Souza. Pärt atribui a esta parte a tessitura mais grave e as notas mais longas, criando uma marcada oposição sonora entre o personagem divino e os demais, humanos. E dá vontade de usar o adjetivo divino para qualificar também seu desempenho. Habitualmente, Michel é chamado para cantar por aqui papéis belcantistas de barítono. Pois bem: logo depois de encarnar um soberbo Guglielmo (em um elenco não menos excelente) no Così fan tutte que abriu a temporada operística do teatro, ele se mostra não menos elegante e adequado ao estilo na música de Pärt, emitindo graves sólidos e decifrando com maestria a complexa partitura do compositor estoniano.
Não vou me queixar nem um pouco se continuarem convidando Michel para cantar partes de Mozart, Rossini e Cimarosa. Mas seu talento é por demais versátil para ficar encerrado apenas desta caixa. Que o Municipal continue buscando repertório não redundante – e que ele seja escalado para defendê-lo.

A 'Paixão' será apresentada mais uma vez neste sábado, dia 8; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO

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O Coral Paulistano durante ensaio da 'Paixão' de Arvo Pärt [Divulgação/Stig de Lavor]
O Coral Paulistano durante ensaio da 'Paixão' de Arvo Pärt [Divulgação/Stig de Lavor]

 

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