Uma personagem e o retrato de dois mundos

por Camila Fresca 28/07/2024

Na última sexta-feira, o Theatro Municipal de São Paulo estreou mais um título de sua temporada lírica. O olhar de Judith é uma double bill, espetáculo composto pelas óperas O castelo de Barba Azul, de Béla Bartók, e Eu, vulcânica, de Malin Bang, com direção cênica do belga Wouter Van Looy e Roberto Minczuk na direção musical e regência da Orquestra Sinfônica Municipal. 

Obra-prima dentro da produção do compositor húngaro e um dos mais importantes títulos operísticos do século XX, O castelo de Barba Azul retoma uma história presente em várias culturas, e que foi fixada em texto pela primeira vez por Charles Perrault no final do século 17. Um duque atormentado, famoso por sua feiúra e sua barba azul, costuma decapitar suas esposas. 

No início do século XX, essa história é retomada pelo libretista Béla Bálazs, amigo de Bártok, à luz do simbolismo e da psicanálise. Barba Azul e sua mais nova esposa, Judith, acabam de chegar em seu castelo e ela quer abrir todas as portas, para trazer luz ao local. O duque acaba cedendo frente à insistência de Judith e ela abre, uma a uma, as sete portas do castelo – ou do interior sombrio do próprio Barba Azul. A tensão vai aumentando até que a última porta revela o aterrorizante destino das esposas anteriores, e que seria também o de Judith.

Dialogar com essa obra, propondo um contraponto à luz do olhar contemporâneo, foi a proposta de O olhar de Judith. Para isto, uma nova ópera foi encomendada à compositora sueca Malin Bang. O projeto, uma coprodução entre o Municipal e o Muziektheater Transparant, da Bélgica, estreou no Folkoperan de Estocolmo, na Suécia, em 2023. Para a versão brasileira, Malin Bang reescreveu a música, originalmente pensada para um conjunto reduzido. Da mesma forma, Wouter Van Looy concebeu uma nova encenação especialmente para o palco do Municipal. 

Em Eu, vulcânica, Judith retorna ao local de sua desgraça: ruínas (que são o cenário único de toda a obra). Agora é o seu próprio castelo, ou sua própria vida interior, que vamos explorar. Ao longo de sete sonhos, ela vai reconstruindo sua identidade. O libreto, de Mara Lee, expõe uma jornada que parte do choque e passa pela raiva, depressão, autoconhecimento e aceitação, até que Judith por fim se liberta.

A costura entre os dois espetáculos se faz a partir de alguns elementos, tais como os prólogos e um duplo da personagem Judith num papel falado. No prólogo original da ópera de Bartók, um narrador não identificado declama: “A cortina de nossas pálpebras subiu. Onde está o palco: fora ou dentro, senhoras e senhores?” A ideia serve de ponto de partida para o prólogo que será a abertura do espetáculo, declamado por Judith (papel falado) e interpretado pela atriz Gilda Nomacce. 

Com uma ação cênica estática, apenas dois cantores no palco e o mesmo cenário o tempo todo, O castelo de Barba Azul guarda sua força na música e no drama psicológico que se desenrola até o final trágico. Na montagem do Municipal, o baixo-barítono argentino Hernán Iturralde encarnou um Barba Azul que, mais do que um sádico cruel, mostra-se um homem atormentado e cindido entre o amor e uma irresistível pulsão mórbida. Por sua vez, a Judith da mezzo-soprano Denise de Freitas é uma mulher apaixonada e forte, com plena ciência da trama em que está se envolvendo. Ambos os cantores, experientes, saíram-se muitíssimo bem diante dos desafios e do estilo altamente cromático da linha vocal, dando não apenas consistência como brilho e complexidade a seus papeis. 

Denise de Freitas e Hernan Iturralde em 'O castelo do Barba Azul' [Divulgação/Larissa Paz]
Denise de Freitas e Hernan Iturralde em 'O castelo do Barba Azul' [Divulgação/Larissa Paz]

 

A escrita orquestral, que segue de perto o desenrolar do texto, alternando-se entre momentos tonais, politonais e modais, é exuberante e impactante, e a excelente performance da Sinfônica Municipal, nas mãos de Minczuk, colaborou para dar à trama o peso e o drama necessários. 

Judith (papel falado) retorna para um segundo prólogo antes de Eu, vulcânica e permanece no palco como um duplo de Judith – agora interpretada pela soprano sueca Alexandra Büchel. Se a primeira história foi contada por dois homens (compositor e libretista), agora temos duas mulheres, pouco mais de cem anos depois, dando continuidade à narrativa. Ao invés de sete portas a abrir, Judith encara, em sete sonhos, seus fantasmas e desejos. Não se coloca como vítima e tampouco como personagem de um único matiz. “Ninguém me sacrificou, ninguém me obrigou [...] Eu cheguei aqui por conta própria”, afirma no primeiro sonho.

Sua transformação se manifesta através da voz, que parte de gritos e vai aos poucos se enfraquecendo e até emudecendo, para gradualmente se recuperar. A linha vocal não é propriamente melódica, mas percebe-se nela um toque modal, remetendo a Bartók, somados a uma espécie de canto-falado e de declamação pura. Esta Judith dialoga com duas “escuridões” – interpretadas pelos cantores Laiana Oliveira e Flavio Mello, mais o ator Flávio Karpinscki. Ao final, Judith conversa com seu próprio “eu” (o papel de Gilda Nomacce), que é quem conduz o desfecho da narrativa. 

Malin Bang afirma que se inspirou na rica e simbólica orquestração de Bartók, cujo fluxo elástico segue sem interrupções o processo do drama. Mas seu resultado sonoro é distinto, uma vez que a orquestra é utilizada de forma bem diferente, com uso maior da percussão, de técnicas expandidas e de texturas sonoras – Bang afirma que a orquestra age como uma “escultura tímbrica” que segue o processo emocional e fisico de Judith. 

Também a cenografia é um elemento importante na coesão entre os dois títulos, com luzes e cores desempenhando papeis cruciais. Em ambas as óperas, a pouca variação da luz e os tons de cinza são onipresentes, em contraposição ao cabelo avermelhado da protagonista – e a cores que surgem ao se abrir as portas do castelo. 

Quem esteve no Municipal desfrutou de uma experiência nova e estimulante. São mais do que bem-vindas iniciativas como esta, de apresentar obras do repertório em sua forma original, porém em diálogo com a criação contemporânea. É uma forma eficaz de enfrentar questões que, hoje, não podem ser deixadas de lado quando se encaram títulos consagrados do repertório lírico – há muitos outros, alias, que mereceriam tal contraponto. Além de uma iniciativa feliz, o resultado foi de alto nível em todos os aspectos, o que inclui o programa de sala – completo, bem-feito e contando com belas ilustrações de Gustavo Piqueira.  

Alexandra Büchel em 'Eu, vulcânica' [Divulgação/Larissa Paz]
Alexandra Büchel em 'Eu, vulcânica' [Divulgação/Larissa Paz]

 

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