Viagens musicais inclusivas

por João Marcos Coelho 10/01/2025

Álbuns “American Railroad” e “Navigator of silences” tratam o cânone europeu clássico com o mesmo respeito e consideração com que mergulham na riqueza das músicas nativas das Américas

Comecei a escutar “American Railroad”, do Silkroad Ensemble, ainda encantado com o recentíssimo álbum “Navigator of silences”, da pianista Erika Ribeiro em duo com a violinista Francesca Anderegg. Aconteceu nestes primeiros dias de 2025. 

A coincidência transformou-se em um sentimento comum que ambos provocam em nossos ouvidos: prometem e entregam verdadeiras “viagens musicais inclusivas”, pode-se dizer. E com a mesma plataforma conceitual: tratam o cânone europeu clássico com o mesmo respeito e consideração com que mergulham na riqueza das músicas nativas das Américas. Não se perde nada ao justapor as ortodoxias clássicas e populares. Ao contrário, ganha-se muito, muito mesmo, em sinceridade artística. É como deixar-se acolchoar no leito natural de nossas músicas. Claro, isso não quer dizer que se tenha a pretensão de reinventar a roda. Ao contrário, é uma operação-resgate: resgate da realidade diversificada, pulsante, dos sons das Américas.

“Navigator” traz para o salão músicos inclusivos como André Mehmari, Léa Freire, Clarice Assad, Yamandu Costa e o grande Radamés Gnattali, pioneiro ilustre na prática musical vista como um território só, coabitado por virtuoses e bambas. É o que experimentei ao escutar uma das mais belas canções brasileiras populares, Beijo Partido, do guitarrista e compositor do Clube da Esquina Toninho Horta, num arranjo de Luca Raele para piano solo que a transforma numa elegia. Ou seria um lied sem palavras?

Como os dois álbuns foram lançados – lá pela Nonesuch, cá pela Rocinante, de Petrópolis – ao mesmo tempo, em novembro do ano passado, “American Railroad” pode ser visto, com alguma “liberdade poética”, como uma contrafação norte-americana de “Navigator of Silences”. 

O Silkroad foi concebido em 1998 pelo violoncelista Yo-Yo Ma, que o liderou até 2020, quando passou o bastão para a cantora folk Rhiannon Giddens. O lema sempre foi o diálogo aberto, livre, entre culturas do planeta, sem pressupostos ou preconceitos. Não estamos diante de um grupo fixo de músicos, mas de um coletivo musical, com cerca de sessenta músicos, entre compositores, arranjadores e músicos de muitas origens e culturas musicais dos cinco continentes. Instrumentos asiáticos como a pipa chinesa, o duduk armênio e a flauta shakuhachi japonesa, estão presentes, num processo de constante renovação timbrística. 

Aos que considerarem um exagero compará-los, remeto à audição de uma das faixas mais expressivas de “American Railroad”: Have you seen my man?, Foi encomendada por Rhiannon Giddens à excepcional cantora de jazz Cécile McLorin Salvant. Ela narra a história de uma mulher caminhando lentamente ao longo dos trilhos de trem, em busca de seu homem, acompanhada por gerações de trabalhadores pretos – eles simplesmente não podem viajar nele, ainda que tenham trabalhado em sua construção. 

Mas ao tratar do mundo da ferrovia, o álbum não se limita aos Estados Unidos. Em Rainy Day, composição de Wu Man, ele combina sua pipa com o banjo de Giddens e a voz para refletir as emoções de esposas e mães chinesas saudosas de seus maridos e filhos trabalhando na ferrovia asiática. Outra canção interessantíssima é Tamping Song, de Fujii, enfocando a contribuição dos imigrantes japoneses para a construção da ferrovia nos anos 1880. Outro exemplo da amplitude global dos projetos do Silkroad é Far Down Far de Gilchrist, que fala das tensões entre as comunidades católica e protestante no contexto dos trabalhadores ferroviários irlandeses.

Escutar e impactar-se com estas criações musicais é perceber o alcance do gesto altruísta de Yo-Yo Ma em 2020, ao deixar a direção do coletivo que criara 22 anos antes. Na ocasião, ele disse que era preciso injetar sangue novo no Silkroad. Rhiannon Giddens é este sangue novo, que, no entanto, espraia-se de modo tão impactante quando o período comandado por Yo-Yo Ma, porém preserva o espírito libertário e democrático do coletivo.

O mais interessante, e por isso agradeço a Erika, é que foi ela que me levou a conectar os dois álbuns, ao me contou sobre a experiência de fazer ao lado de Francesca Anderegg uma residência artística em 2022, em Boston, com os músicos do Silkroad. No coletivo, os músicos improvisam, arranjam, compõem, enfim, assumem todos os papéis para os quais sentem-se aptos. Não há mais a amarra do músico clássico tradicional. Algo que por aqui músicos extraordinários encarnam hoje, como Mehmari e Luca Raele, filhotes afortunados de uma linhagem encarnada por Villa-Lobos e logo em seguida, de modo ainda mais manifesto, por Radamés Gnattali. E, claro, não dá pra esquecer de Felipe Senna e sua “CâmaraNova”, que lançou no final do ano passado, outra coincidência, “Overture”, um álbum tão inclusivo quanto estes dois sobre os quais estou escrevendo agora. 

É algo que devemos comemorar. 

[Clique aqui para ouvir “Navigator of Silences” no spotify]
[Clique aqui para ouvir “American Railroad” no spotify]

Francesca Anderegg e Erika Ribeiro (divulgação / divulgação, João Atala)
Francesca Anderegg e Erika Ribeiro (divulgação / divulgação, João Atala)

 

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