Com a morte de Niza de Castro Tank, cala-se a voz mais associada a nosso maior compositor de óperas: o campineiro Antonio Carlos Gomes (1836-1896).
Não se trata de exagero sugerido pela comoção com a notícia. Niza foi a intérprete mais destacada do papel feminino da mais célebre ópera de Carlos Gomes, Il Guarany. Em 1958, participou da quixotesca e heroica empreitada da gravação – com as forças do Theatro Municipal de São Paulo, dirigidas por Armando Belardi, e para um selo brasileiro, a Chantecler – da partitura na íntegra – um registro que até hoje ouve-se com muito prazer, sobretudo devido à extrema agilidade da voz de Niza nas coloraturas gomesianas. Essa mesma Ceci, que ela tanto cantou nos palcos brasileiros, fez-se ouvir ainda na Itália, no Teatro di San Carlo, de Nápoles, em 1971, nas comemorações do centenário da ópera.
Mas teve mais. Teve o resgate da ópera A Noite do Castelo, em Campinas, em 1977, pelo maestro Benito Juarez (cujo registro ao vivo seria lançado em CD pelo selo Master Class) – a esse papel, de Leonor, em português, Niza regressaria em 1996, em uma récita em concerto no Memorial da América Latina, sob regência de Achille Picchi.
E teve ainda outro resgate, também ele preservado em gravação ao vivo lançada pelo selo Master Class: o da ópera Condor (ou Odalea), em concerto, sob a batuta de Belardi, na Sala Cidade de São Paulo, em 1986.
E isso não esgota o assunto. Niza emprestou sua autoridade a Minhas Pobres Canções, edição integral em partitura da obra para canto e piano de Carlos Gomes – o caprichado lançamento da Algol, em 2006, incluía ainda um CD duplo, no qual as obras são interpretadas por Tank e alguns de seus pupilos, acompanhados ao piano por Achille Picchi.
No ao ano anterior, ela havia acabado de participar da gravação da Missa de São Sebastião, de Carlos Gomes, com a Orquestra Sinfônica de Campinas, regida por Henrique Lian.
E houve ainda performances como Condessa de Boissy, em Lo Schiavo (1974) e Rainha Isabel, em Colombo (1981).
Em sua biografia, Niza, apesar das outras, escrita por Sara Lopes, e lançada na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em 2004, a cantora indaga-se sobre as razões de sua ligação tão forte com o compositor. “Será porque vivo em Campinas? Será porque fui influenciada pelo maestro Belardi? Será porque ouvia minha mãe cantarolando Quem Sabe?, nos meus longínquos 6 anos de idade? Será porque meu professor, Sylvio Bueno Teixeira, começou meu repertório mais difícil, nos meus estudos de canto, pela Ballata de ll Guarany? Não sei, não sei dizer.”
O fato é que foi um privilégio ter uma musicista tão talentosa colocando todos seus superlativos recursos técnicos a serviço da obra de Carlos Gomes. E não que lhe faltassem credenciais no repertório internacional. No Theatro Municipal de São Paulo, Niza brilhou como Gilda (Rigoletto, de Verdi), Lucia di Lammermoor (Donizetti), Rosina (Il Barbiere di Siviglia, de Rossini), Lakmé (Delibes), Amina (La Sonnambula, de Bellini)…
Não tive o privilégio de ouvi-la no auge e frescor da juventude. Porém Niza, felizmente, foi uma cantora longeva. E o que ela era capaz de fazer, do ponto de vista vocal, já entrada nos anos, era impressionante. Niza parecia desafiar o tempo, e ainda exibia uma solidez inacreditável – para não falar no enorme carisma e presença de palco.
Interessados em maiores detalhes sobre sua trajetória devem ler o comovido e comovente texto que João Luiz Sampaio publicou neste mesmo site, por ocasião de seu 90º aniversário, em 2021. Sampaio captou com sensibilidade todo o apreço que os amantes do canto lírico temos pela arte dessa figura única.
Muito obrigado, Niza!
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