Neste 28 de julho, Anna Maria Kieffer completa 80 anos. Em dezembro do ano passado ela lançou, nos Encontros Clássicos, um CD com canções de Alberto Nepomuceno, ao lado do pianista Achille Picchi. Foi uma edição ampliada de um trabalho pioneiro que, na década de 1990, abordou a obra de um dos maiores compositores nacionais, numa época em que o romantismo brasileiro, diferente do momento atual, era pouco valorizado.
Não que Anna seja especializada (no sentido de se restringir) no período romântico. A despeito de sua importância, esse lançamento é quase como a ponta de um iceberg. Não se pode nem mesmo definir essa mezzo soprano como uma cantora, sob pena de cometer uma injustiça. Quem conhece sua trajetória profissional sabe que é difícil delimitar uma única linha de atuação.
Seu trabalho é por natureza interdisciplinar, propondo diálogos entre a música e as artes plásticas, a literatura ou o cinema. Nascida em São Paulo, ela teve como principais mestres Eládio Perez Gonzalez, H.J. Koellreutter, Magdalena Lébeis, Andrea von Ramm, Osvaldo Lacerda e Mario Ficarelli. Foi também discípula de Maria José de Carvalho, com quem teve aulas de teatro, dicção e estilo.
No campo musical, sua atuação centra-se tanto na música antiga como na contemporânea. Na década de 1970 passou a integrar o Núcleo Música Nova de São Paulo, fundado pelo compositor Conrado Silva (1974), ao mesmo tempo em que criava, ao lado de Thais Veiga Borges, um grupo voltado não só à música antiga europeia como também das Américas – o Confraria (1975).
O que une os dois extremos, dando sentido a atividades que num primeiro momento podem parecer distantes, é seu espírito inquieto e naturalmente investigador, cujas pesquisas têm como finalidade última a criação. É assim que surgem, por exemplo, trabalhos como Teatro do Descobrimento, que une pesquisa e recriação musical para retratar o universo sonoro do Brasil nos séculos XVI e XVII.
O disco foi o primeiro da série Memória Musical Brasileira, criada por ela e que reúne trabalhos de fundamental importância como o próprio Teatro, além de Viagem pelo Brasil (com obras anotadas por viajantes que estiveram no país durante a primeira metade do século XIX), Marília de Dirceu (com alguns dos célebres poemas de Tomás Antonio Gonzaga musicados por autor anônimo) ou ainda Cancioneiro da Imigração, que aborda a memória musical de 15 comunidades de imigrantes na cidade de São Paulo nos séculos XIX e XX.
Anna também foi intérprete e colaboradora de compositores centrais para a música brasileira do século XX, como Jocy de Oliveira, de quem estreou várias obras, e Gilberto Mendes, que escreveu para ela a emblemática Ópera aberta, para soprano e halterofilista.
Também a ela é dedicada a incrível Espaços habitados, ópera para voz e meios eletroacústicos do uruguaio Conrado Silva, que utiliza fragmentos de Galáxias, de Haroldo de Campos e tem videografia de Tamara K a partir de desenhos de Carmela Gross.
O belga Leo Kupper foi outro de seus parceiros importantes. Caminhos da Voz/ Ways of the voice é uma obra cuja colaboração entre intérprete e compositor se alongou por 30 anos e que utiliza a voz como matéria prima para peças eletroacústicas.
A lista é longa e interessantíssima, e poderia incluir ainda Música para Niobe, trilha sonora criada a partir da leitura vocal dos grafismos presentes nos quadros de Niobe Xandó; ou Vieira – 400 anos, espetáculo e disco comemorativos aos 400 anos de nascimento do Padre Antonio Vieira (ambos projetos em colaboração com Vanderlei Lucentini).
Cantora, pesquisadora, criadora, produtora: o trabalho artístico de Anna Maria Kieffer inclui tudo isso, mas ainda não se esgota nesses termos. Em 1985, por exemplo, como curadora da parte musical da 18ª Bienal Internacional de São Paulo, ela foi a responsável pela vinda de John Cage ao Brasil. Pela primeira vez, o autor de 4’33” desembarcava no país para participar de happenings, homenagens e concertos.
Assim, a data especialíssima que marca o dia de hoje merece ser celebrada – não apenas pelas muitas realizações dessa notável artista, mas também porque as pesquisas, ideias e criações de Anna Maria Kieffer seguem se materializando em projetos de grande originalidade e beleza.
Leia também
Opinião Pierre Boulez e a vanguarda institucionalizada, por Jorge Coli
Notícias Projeto Sinos é destaque da edição de agosto da Revista CONCERTO
Notícias Prepare-se: sete concertos e óperas para ver ao vivo ou na internet
Notícias Pauline Viardot, 200 anos: trajetória a ser redescoberta
Notícias Osusp volta ao Anfiteatro Camargo Guarnieri e anuncia programação
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.
Registro minha enorme…
Registro minha enorme admiração pela Anna Maria com quem tive - e continuo tendo - a honra de trabalhar e conviver em, espero por muito tempo ainda. Parabéns querida Anna!
Registro minha enorme…
Registro minha enorme admiração pela Anna Maria com quem tive - e continuo tendo - a honra de trabalhar e conviver e, espero por muito tempo ainda. Parabéns querida Anna!