Antonio Meneses, um profundo pensador da música

Nunca houve um músico brasileiro de cordas como Antonio Meneses. Antes dele, tivéramos craques do piano, alguns cantores que ascenderam à ribalta internacional, e uma sólida escola de violão. Porém, sem demérito para seus valorosos precursores, nenhum brasileiro chegou tão longe empunhando o arco quanto nosso glorioso pernambucano.

Ele era também o nome mais importante da música clássica brasileira, e o ponto de virada foi a espetacular e até hoje inigualada vitória no Concurso Tchaikóvski, em Moscou, em 1982, logo após triunfo internacional de Munique. No auge da era do disco, de repente havia um brasileiro gravando pela Deutsche Grammophon (o selo amarelo cujos discos comprávamos a peso de ouro), com uma orquestra do nível inverossímil da Filarmônica de Berlim, ao lado da esfuziante violinista Anne-Sophie Mutter, sob a batuta do mítico Herbert von Karajan. Era difícil de acreditar, de tão lindo, e então felizmente gravaram também em vídeo nosso Toninho no Don Quixote, de Richard Strauss, no solo sagrado da Philharmonie de Berlim.

Sua relação para lá de especial com as suítes de Bach (que ele gravou nada menos do que três vezes) revela antes um profundo pensador da música do que um virtuose interessado nas acrobacias dos prodígios musculares (embora sua técnica fosse para lá de apurada). E a sonoridade refinada e fraseado cuidadoso faziam dele o camerista por excelência. Essa qualidade Meneses teve a chance de aprimorar na longa parceria com o pianista Menahem Pressler – tanto nos dez anos em que estiveram juntos no Beaux Arts Trio (ao lado, sucessivamente, dos violinistas Young Uck-Kim e Daniel Hope), quanto no mágico duo que veio ao Brasil e deixou gravadas sonatas de Beethoven.

A experiência haurida junto a Pressler Meneses compartilhava com seus alunos da universidade de Berna e de seu curso de verão em Siena, na Itália. Mais do que isso: com os músicos brasileiros, nas viagens periódicas que fazia a um país em que jamais voltou a residir, porém ao qual nunca deixou de se sentir ligado.

Assim, ao teclado, além da filipina Cecile Licad (com quem gravou pela EMI uma incandescente versão do Trio de Tchaikóvski, ao lado da violinista Nadja Salerno-Sonnenberg), sua primeira esposa, da portuguesa Maria João Pires (com a qual ficou o registro ao vivo de um miraculoso recital no Wigmore Hall, em Londres, em 2012) e do suíço Gérard Wyss (ao lado de quem registrou boa parte do repertório romântico germânico), teve uma plêiade de parceiros que quase coincide com uma antologia do piano brasileiro na segunda metade do século XX e começo do XXI.

Houve, obviamente, o “duo dos sonhos” com o Reverendo Nelson Freire, assim como um antigo LP da Eldorado com Gilberto Tinetti, que a Revista CONCERTO posteriormente reeditou em CD. As parcerias com o cravo de Rosana Lanzelotte, a temperatura elevada de seu encontro com Cristina Ortiz, os recitais com Arnaldo Cohen, as gravações com Celina Szrvinsk, a abertura para a nova geração na parceria especialmente generosa e refinada com Cristian Budu.

Porque Meneses tinha plena consciência de que era não apenas um artista de nível internacional, mas também um exemplo em nosso país. E soube também dedicar-se à música e aos músicos do Brasil. Nunca me esquecerei de uma apresentação com a Orquestra Sinfônica de Santo André, lá por 1994, sob a batuta do saudoso Flávio Florence, quando, depois de tocar um concerto solista na primeira parte, ele sentou-se para chefiar o naipe dos violoncelos na sinfonia que encerrava o programa...

Os concertos de Villa-Lobos Meneses registrou duas vezes. Ao lado do pianista Ricardo Castro e do violinista Claudio Cruz (parceiros queridos com os quais atuou diversas vezes), formou um “power trio” para gravar em alto nível as obras de nosso compositor maior.

Mas também tinha os ouvidos abertos para as sonoridades do presente. Assim, para introduzir cada uma das suítes de Bach, encomendou prelúdios para meia dúzia de compositores brasileiros contemporâneos, cuja produção igualmente prestigiou em outras ocasiões: Ronaldo Miranda, Almeida Prado, Marlos Nobre, Edino Krieger, Marisa Rezende e Marco Padilha.

Na música de hoje, interessava-lhe sobretudo aquilo que soasse nacional. Daí aquela que talvez tenha sido sua derradeira paixão musical brasileira: André Mehmari. Para comemorar seus 60 anos (e os 40 do colega), Meneses e Mehmari gravaram em 2017 um álbum em duo, incluindo uma Suíte Brasileira composta especialmente para a ocasião. E a última aparição de Meneses em nossos palcos, em dezembro do ano passado, com a Filarmônica de Minas Gerais, sob a batuta de Fabio Mechetti, foi sintomaticamente para estrear o concerto que Mehmari escrevera para ele.

 

Na entrevista que deu à Revista CONCERTO por ocasião dessa estreia, Meneses revelava-se empolgado, produtivo, e cheio de planos. Ver uma trajetória criativa dessas ser cortada de forma tão brutal e prematura dilacera o coração e esfrangalha a alma. Consolo não poderá haver. Fica o legado de uma discografia robusta, testemunhando um talento sem par. E a história contada por João Luiz Sampaio e Luciana Medeiros na sensível biografia Antonio Meneses – Arquitetura da Emoção.

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Meneses com Karajan e Anne-Sophie Mutter [Reprodução]
Meneses com Karajan e Anne-Sophie Mutter em detalhe da capa do disco em que registraram o 'Concerto duplo' de Brahms [Reprodução/Deutsche Grammophon]

 

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Na minha iniciação como apreciador de música clássica, sua apresentação num festival de inverno de Campos do Jordão, tocando Variações sobre um tema rococó de Tchaikovsky, me marcou. Acho que final dos anos 80.

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