O musicólogo Flavio Silva responde ao texto “A juventude de Berlioz”, de Jorge Coli, publicado na edição de junho da Revista CONCERTO
Sobre a formação de Berlioz, Jorge Coli escreveu: “Gluck, Shakespeare, Beethoven e Weber foram, para esse autodidata, os verdadeiros mestres formadores. Impossível que fossem melhores”. Faltou, porém, referir o que diferencia a Sinfonia fantástica, de 1830 – três anos depois da morte de Beethoven – de tudo o que até então fora composto, e que foi essencial para a expressividade do compositor: um francesismo ancorado na passionalidade desenfreada que a Revolução Francesa desencadeara, de cujo desenrolar Berlioz não participara, mas que devia estar bem presente para todos os que, como ele, nasceram no início do século XIX ou, mais precisamente, em 1803. Essa passionalidade explode na Fantástica, onde a figurada “Marcha para o suplício”, encadeada ao “Sonho de uma noite do Sabath”, é uma alucinada recriação dos desfiles de condenados conduzidos em carretas, entre os apupos da multidão, rumo à guilhotina. Os acentos voluntariosos, as assimetrias, as súbitas mudanças de humor e de direção nessa obra não parecem combinar com o gênio alemão.
Berlioz ouviu a Eroica em Paris em 1828; é pouco provável que ele não tenha relacionado a “Marcha fúnebre” dessa obra com os patéticos e dramáticos acentos da Marche lúgubre que François-Joseph Gossec (1733-1829) escreveu para uma cerimônia fúnebre na Revolução e da qual o barão vienense Van Swieten tinha a partitura em sua biblioteca frequentada por Haydn, Mozart, Beethoven e outros músicos. A aproximação que faço não é gratuita: vi-a confirmada no folheto de uma gravação da Eroica pelo regente Stanislaw Skrowaczewsky e em alguma outra fonte. A marcha de Gossec é uma das que foram compostas para cerimônias fúnebres durante a Revolução. Voltando a Beethoven, o dramatismo de Egmont e de Coriolano está prefigurado na abertura da ópera Demophon, de Vogel, que conheceu grande sucesso no período revolucionário; a breve introdução orquestral de um Hino à agricultura, de Lefèvre, preludia o lirismo campestre da Pastoral.
Aproximamo-nos, agora, de outro aspecto de francesismo encarnado por Berlioz. A música da Revolução não se limitou a receber influências alemãs, italianas ou vienenses, e nem foi uma simples continuação do que antes era feito na França. Ela teve que sair dos salões dos palácios, abandonar o cravo e os pequenos conjuntos de cordas, esquecer os refinamentos da nobreza para se dirigir às grandes massas em amplos espaços fechados ou ao ar livre, donde o maior recurso aos sopros, às percussões, às enormes massas corais. A Grande symphonie funèbre et triomphale e os 16 tímpanos do Requiem de Berlioz são ‒ como a Fantástica ‒ impensáveis sem a música criada para e durante a Revolução e sem o espírito que animou essa criação. Nem a Áustria nem a Alemanha sentiram necessidade de redigir um tratado de orquestração; o de Berlioz, de 1844, soa como um eco das transformações trazidas pela Fantástica.
Van Swieten também tinha em sua coleção a partitura do Requiem de Gossec, de cuja edição fora um dos sobrescritores, e cuja estreia, em 1760, demandou pelo menos 200 intérpretes. Segundo Fétis, Philidor, presente na ocasião, declarou que trocaria por esse Requiem todas as suas obras. Louis Devos, que gravou essa obra, observou “a abundância de passagens onde pode ser desenhado um paralelo entre o Requiem de Gossec e o de Mozart”, retomando comentários dos musicólogos Hartmunt Kroness e Carl de Nys: “The descending rhythmic pattern at the beginning of the Dies irae in Gossec’s work is identical to the Rex Tremendae majestatis and the Flammis acribus addictis in Mozart’s Requiem. Note, too, the strong resemblance between the melodic analysis and harmonic progression of Gossec’s Introitus and Mozart’s Agnus Dei. The poignant chromatics in Gossec’s admirable Lacrimosa is strikingly reminiscent of Mozart’s Recordare”. Nessa citação, deve ser invertida a inversão temporal que faz de Gossec um sucessor de Mozart.
No elogio fúnebre a Gossec, publicado na Révue musicale em 1831, um ano após a estreia da Fantástica, Fétis a ele se referiu como “o Nestor dos músicos, o fundador da escola francesa moderna [...] ele lançou as bases do esplendor a que a música francesa chegou”. E sobre a música instrumental: “não havia nada nesse gênero que merecesse alguma estima nas produções francesas; a sinfonia propriamente dita era totalmente desconhecida. As primeiras foram publicadas por Gossec em 1752 [...] no mesmo ano em que a primeira sinfonia de Haydn foi escrita”. Foi importante para Gossec sua ligação com Johann Stamitz, fundador da orquestra de Mannheim, que esteve em Paris entre 1754 e 1755, apresentando-se nos Concerts Spirituels onde o francês pontificava. Também Gluck, em seu período parisiense, de 1774 a 1779, manteve forte relação com Gossec que, aos 56 anos, tornou-se o principal músico da Revolução e condutor da criação do Conservatório de Paris, que se tornaria, sob sua direção, modelo no gênero.
A Revolução durou dez anos; sua brevidade e intensidade não possibilitaram a criação de obras ditas definitivas, mas suscitaram uma miríade de composições destinadas às festas públicas que promovia e que podem ser consideradas como obras programáticas, ou funcionais. Participaram também dessa febre composicional Cherubini, Méhul, Catel, Grétry e Le Sueur, professor de Berlioz, primeiro e incontestável grande fruto musical ‒ ainda que indireto ‒ do espírito e da música da Revolução, sem a qual ele é incompreensível.
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