Dois documentários essenciais sobre a Semana de 22 e Villa em Paris

por João Marcos Coelho 20/06/2023

Enquanto assistia a dois documentários estreados semana passada no Festival In-Edit, Semana Sem Fim e Villa-Lobos em Paris, duas ideias recorrentes alternavam-se em minha mente. Primeiro, a da Semana como mito, que vem sendo repensado como evento fundador da modernidade no Brasil década após década, desde 1922, o ano em que foi realizada no Theatro Municipal de São Paulo, ideia desenvolvida por Frederico Coelho em Semana Sem Fim, por sinal título de seu livro de 2012 que examina década-a-década os noventa anos da Semana. O documentário dirigido por Marcelo Machado constitui, de certo modo, um aggiornamento para 2022, marcando o centenário.

Comoveu-me particularmente a cena em que o professor de Literatura e Pesquisas Musicais da PUC-Rio segura, carinhosa e respeitosamente com as mãos enluvadas, o famoso Cristo de trancinhas de Brecheret, no Instituto de Estudos Brasileiros. Fred Coelho passeia como um “flâneur” pela cidade, conversando com especialistas, livreiros (incluindo os famosos “bouquinistes”, sebos parisienses às margens do Sena). Seu conceito-chave vai tomando forma: “A Semana de Arte Moderna aos poucos vai se tornando um mito fundacional do pensamento sobre cultura brasileira. A especificidade daquele momento de São Paulo, como diria Nicolau Sevcenko, era o de ser uma cidade que não era: não era branca, não era preta, não era indígena, não era portuguesa, não era italiana – e era tudo ao mesmo tempo”.

A segunda ideia que se misturava com a da Semana de 22 como mito tomou forma quando assisti Villa-Lobos em Paris. Uma ideia até certo ponto hoje um lugar-comum. O de que é preciso sair do Brasil, ficar longe dele, para enxergá-lo em toda a riqueza de sua arte e cultura popular. Lugar-comum que se transforma, neste magnífico doc, na pedra de toque que nos leva a entender como e por que os Choros são tão decisivos, fundamentais, na sua caudalosa produção. Afinal, como a Semana de 22, aliás, Villa também é um mito que, nascido durante aquele fevereiro célebre no Theatro Municipal, a cada década cresce de estatura, adquire o status de um dos maiores compositores do século 20, em sentido absoluto. Já se repetiu mil vezes sua entrada no palco do teatro com um pé enfaixado. Ao público, parecia ato vanguardista. Era gota, na verdade. Mas virou símbolo do novo que pregavam os modernistas naquele momento. Eternizou-se.

De lembrança em lembrança, assistindo Villa-Lobos em Paris, entendi melhor esta frase-farol de Silviano Santiago, escrita nos anos 1970: “A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza”. Assim inscrevemos nosso lugar “no mapa da civilização ocidental”. E este lugar é o da “falsa obediência”. Não podemos ser passivos, por risco de “desaparecimento por analogia”. Assinalar a diferença é “marcar nossa presença, uma presença muitas vezes de vanguarda” (no artigo “O entrelugar do discurso latino-americano”). 

O doc amorosamente concebido e apresentado pelo compositor Alexandre Guerra não discute exatamente este conceito, mas de certo modo a sensação de entrelugar permeia seu passeio por Paris. Como um “flâneur”, eu já ia repetindo, mas não. Nas cenas iniciais Alexandre vai colando cartazes de Villa-Lobos em postes, janelas, todo lugar possível pela mítica cidade que Villa-Lobos tomou de assalto e a dominou. Afinal, mesmo sentindo o enorme impacto do encontro com a cidade que era então capital mundial das artes e da cultura, ele é que fez dela um espaço de legitimação de seu trabalho ao mesmo tempo que deixava claro, tanto nas hilárias e provocantes entrevistas na imprensa francesa quanto em suas obras que alardeavam como um gigantesco megafone sua brasilidade, que sua música era diferente, que ele tinha chegado não para aprender, mas para mostrar sua música bem brasileira, segundo sua frase famosa.

Como Eunice Katunda duas décadas depois, em 1948, faria ao conhecer a Europa, ter aulas com Hermann Scherchen, tornar-se amiga de compositores como Luigi Maderna e Luigi Nono. Em emocionantes cartas pouquíssimo conhecidas, ela as assina como Macunaíma. Um exemplo de seu estado de espírito naquele momento: “Fiz em Veneza uma audição musical folclórica, apresentei cantos de trabalho, cantos de nostalgia, falei nas grandes imigrações do nordeste, nos rituais dos antigos cultos africanos, nas danças tradicionais do interior de São Paulo, nas grandes divisões das zonas folclóricas, falei nas qualidades e nos defeitos nossos com sinceridade. Falei do Brasil como brasileira, mas não como nacionalista”.

Perdoem o desvio. Volto a Villa em Paris. Guerra percorre locais icônicos da capital francesa por onde Villa-Lobos viveu e atuou, em duas estadas na capital francesa, entre 1923 e 1930. Ele assina o roteiro, em parceria com Marcelo Machado, e eles contam com o apoio precioso de nossa parceira aqui na Revista CONCERTO, Camila Fresca, que está concluindo uma nova biografia do compositor.

Alexandre trabalhou nos últimos sete anos neste documentário que é, acima de tudo, um comovente ato de amor e paixão ao Villa. Preciso, escolheu como tema justamente um dos períodos menos documentados da vida do compositor brasileiro. Embora tenham sido anos decisivos para ele e para a música brasileira, não há gravações, imagens. Daí a solução inteligente de transformar Alexandre no nosso guia pela “Paris de Villa-Lobos”: ele relembra os feitos do brasileiro na Salle Gaveau, vai à Bilioteca Nacional, promove uma feijoada bem à maneira das que o Villa fazia em Paris.

Uma palavra final sobre o diretor destes dois documentários. Marcelo Machado seguramente é um cineasta de enorme talento criativo, em sua longa e notável carreira atrás das câmeras. Uma excelência que sobressai principalmente nos documentários musicais. Aprendi muito com ele nos cinco docs da série O Som da Orquestra, que fizemos a quatro mãos para o Selo SESC ao longo de mais de uma década (o último deles, Percussão – a Origem da Música, acaba de ser lançado pelo Selo SESC).

Veja mais detalhes sobre a programação do festival In-Edit no Roteiro do Site CONCERTO

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Alexandre Guerra espalhou por Paris cartazes com o nome de Villa-Lobos [Divulgação/Thiago Pelaes]
Alexandre Guerra espalhou por Paris cartazes com o nome de Villa-Lobos [Divulgação/Thiago Pelaes]

 

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