Como disse Livia Sabag, curadora do evento, “não estamos registrando um concerto em vídeo; o concerto é o vídeo”
A pandemia pegou o mundo de surpresa. E, infelizmente, a crise ainda está longe de passar. Se em razão da ciência e de investimento maciço já é possível vislumbrar a luz no fim do túnel, certamente a normalização de nosso dia a dia ainda demorará meses. Assim, por ora, seguiremos trabalhando, “encontrando” os amigos e curtindo o nosso lazer na nova realidade do mundo virtual.
A pandemia impactou o mundo da cultura, e especialmente as artes performáticas (música, ópera, teatro, dança), de maneira cruel. Absolutamente dependente das apresentações públicas – e, portanto, de povo aglomerado –, a nossa atividade subitamente se viu em um gigantesco impasse. Parou tudo, orquestras, concertos, recitais. E as salas de concerto e os teatros de ópera fecharam. E quem mais sofreu e sofre são os artistas e os produtores independentes, já que corpos estáveis ainda contam com alguma retaguarda do Estado.
Já escrevi antes sobre projetos musicais que acertaram ao reconhecer a pandemia como parte indissociável de nossa realidade atual, incorporando esse dado em seus projetos e assim até muitas vezes potencializando o resultado final. Vamos nos lembrar do Fimuca, o Festival Internacional de Música em Casa, que, com todas as carências e precariedades daquele momento, impactou milhares de estudantes de música de todo país. Portanto, não é (ainda) o fim do mundo. Ao contrário, pode ser a abertura para novas aventuras artísticas e musicais. E é sobre mais um exemplo desses que quero escrever hoje.
Já há muitos anos divulgamos o Festival de Música Erudita do Espírito Santo na Revista CONCERTO. Idealizado e realizado pela Companhia de Ópera do Espírito Santo, de Tarcísio Santório, o Festival sempre girou em torno da montagem de uma ópera. Com a pandemia, Tarcísio e a codiretora Natércia Lopes deixaram a ópera de lado, alteraram o conceito e conceberam um evento inteiramente digital, transmitindo os concertos, realizados o Teatro do Sesi em Vitória, ao vivo pelo YouTube. Pela primeira vez convidaram uma curadora para o evento, a diretora cênica Livia Sabag, e o maestro Gabriel Rhein-Schirato como consultor musical. Reinventaram o festival, para usar a palavra do momento, e, com essa equipe, criaram um evento que pode ser acompanhado no Brasil inteiro e que resultou em uma das boas realizações do ano.
Com a linha curatorial resumida no lema “Fronteiras: interdição e permeabilidades”, Livia Sabag explorou questões da atualidade para estabelecer novas conexões, como contou na entrevista concedida a Luciana Medeiros e publicada no Site CONCERTO (leia aqui). Concretamente, o festival programou diálogos da música brasileira com a música de Portugal e da América Latina, baseados na criação do século XX aos dias de hoje. Na escolha dos repertórios, valendo-se de um amplo leque de tendências estéticas, Livia e Gabriel propuseram uma justaposição de linguagens mais contemporâneas com criações mais tradicionais e de inspiração popular. Rejeitando dogmas, o festival estimulou uma saudável comunicação que lança nova luz sobre o panorama da criação musical. Lendo assim pode parecer um pouco acadêmico, mas foi tudo menos isso. Foram concertos de alta voltagem artística.
Só para dar uma ideia, entre os compositores, o caldeirão musical colorido e multifacetado incluiu nomes como Heitor Villa-Lobos, Dinorá de Carvalho, Astor Piazzolla, Fernando Lopes-Graça, Chiquinha Gonzaga, Kilza Setti, Cláudio Santoro, Esther Scliar, Lina Pires de Campos, Osvaldo Lacerda, Tia Inah, Jocy de Oliveira, Eurico Carrapatoso, Tatiana Catanzaro, Antonio Ribeiro, Leonardo Martinelli, Marisa Rezende, Mauricio de Bonis, Silvia de Lucca e Ernani Aguiar.
A originalidade da proposta já se reconhece nas formações musicais adotadas, que incluíram além da orquestra da câmara, quarteto e quinteto de cordas, também duos de violino e violoncelo, voz e violino, voz e piano e voz e violão. Entre os artistas participaram cantoras como Manuela Freua, Camila Titinger, Marina Considera e Meire Norma, instrumentistas como Emmanuele Baldini, Gabriela Queiroz e Ricardo Ballestero, e o Quarteto Bratya, a Camerata Sesi ES com regência de Gabriela Queiroz e a Orquestra Sinfônica do Espírito Santo sob direção de Helder Trefzger.
Além de oito concertos, o Festival também promoveu cinco mesas de debates, que abordaram temas como o popular e o erudito, compositoras nas salas de concerto ou música contemporânea e sociedade.
Uma das figuras centrais da música portuguesa do século passado, Fernando Lopes-Graça (1906-1994), também teve obras interpretadas. Além de grande compositor, Lopes-Graça foi um instigante pensador com importante influência no debate cultural da época. Ele também esteve no Brasil duas vezes e manteve contato e correspondência com diversos de nossos autores. Lopes-Graça foi tema de uma das mesas, que reuniu as pesquisadoras Ana Claudia Assis e Guilhermina Lopes, e o pianista Ricardo Ballestero.
Cientes de que o mundo virtual não é simplesmente o da reprodução da sala de concertos na internet, o Festival de Música Erudita do Espírito Santo também investiu na transmissão audiovisual, sem dúvida um dos grandes diferenciais da produção. Dirigidos pela cineasta Úrsula Dart, os concertos filmados – um palco escuro, uma cuidada iluminação e uma dinâmica condução das câmeras – ganharam uma nova e excelente dimensão estética visual. Como disse Livia Sabag na entrevista para a Revista CONCERTO: “Importante que seja um olhar específico, bem trabalhado. Agora, afinal de contas, não estamos registrando um concerto em vídeo; o concerto é o vídeo”.
Acertaram em cheio!
Os concertos e as mesas de debates podem ser assistidos no canal do YouTube do Festival de Música Erudita do Espírito Santo (clique aqui para acessar).
p.s. E por falar em ideias artísticas na pandemia, adorei o novo projeto da São Paulo Companhia de Dança (SPCD) em parceria com o Itaú Cultural, uma websérie voltada para o público infantil e seus pais chamada “Brincar e Dançar”. A série “tem como objetivo estimular as crianças e seus familiares a se movimentarem e experimentarem a arte da dança de forma divertida e prazerosa dentro de suas casas, a partir de instruções lúdicas transmitidas por meio de ferramentas digitais em atividades que incentivam a criatividade e a imaginação”. Como afirma a diretora da SPCD Inês Bogéa, a ideia é “oferecer novos conteúdos às crianças que estão em casa de modo a tornar este período de distanciamento social mais interativo e dinâmico para elas. Nesta websérie, reunimos atividades que aproximam pais e filhos para que, mesmo longe dos parques e locais de lazer, eles possam se movimentar e se divertir em família”.
Serão 10 episódios, sempre aos domingos, às 11h (eles ficam à disposição nas páginas do YouTube da Itaú Cultural ou da SPCD). Assisti ao primeiro, no domingo dia 29. É uma boa diversão para a criançada e seus pais (clique aqui para assistir).
Em tempo: vale lembrar que, com todas as restrições impostas pela covid-19 e os respectivos protocolos de segurança, a SPCD segue com sua “atividade principal”, que são apresentações com transmissão on-line de sua temporada no Teatro Sérgio Cardoso e em outros teatros da cidade e do estado.
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