H.L. Mencken e a música

por João Marcos Coelho 28/05/2023

"Só existem dois tipos de música: a boa e a ruim." No início deste mês, descobri a real fonte da afirmação acima, que já andou em muitas bocas ilustres – e outras nem tanto – nos últimos cem anos.

E quem divulgou a descoberta foi Alex Ross, crítico musical da revista semanal The New Yorker. Num post de seu blog therestisnoise.com, ele faz um ligeiro histórico da frase. Lembra que em 1962 Duke Ellington escreveu que “simplesmente há dois tipos de música: a boa música, e a outra”. Diz que a frase também foi atribuída a Louis Armstrong. Sua garimpagem retrocede ao século XIX, ao livro Vida Social em Munique (1863), de Edward Wilberforce, que cita Rossini dizendo o seguinte: “Meu caro senhor, não há diferença como você supõe entre a música italiana, a francesa e a alemã; só há dois tipos de música, a boa e a ruim”.

Mas detecta uma fonte de sete anos antes, 1856. Naquele ano o poeta e dramaturgo Franz Grillparzer (1791-1872) escreveu um punhado de versinhos definitivos... que tira um sarro dos pobres escribas musicais e relembra que a frase é absolutamente verdadeira. Reproduzo a quadrinha (traduzo literalmente):

"Os críticos, ou seja, os novos,
Eu os comparo aos papagaios,
Que sabem três ou quatro palavras
Que repetem em todos os lugares.
Romântico, clássico e moderno.
Parece um julgamento para esses senhores,
E, com coragem orgulhosa eles ignoram
Os verdadeiros gêneros: mau  e bom."

Tudo muito bom, tudo muito bem. Mas Alex Ross esqueceu-se de um personagem iconoclasta, incrivelmente inteligente e sagaz, como se dizia antigamente, que, nasceu em Baltimore em 1880 e lá morreu em 1956. É fato que Henry Louis Mencken, um dos maiores frasistas da imprensa norte-americana, ferino e bem-humorado, escreveu uma variante da frase, mas é certo que ele tinha conhecimento da afirmação original que se referia à música.  

Foi o que bastou para eu reler trechos de um livro maravilhoso, sobre o qual escrevi um artigo mais de vinte anos atrás. Comprei num sebo de Baltimore: H.L.Mencken On Music, organizado por Louis Cheslock. E lançado em 1961, pela Knopf de Nova York. Uma preciosidade à qual sempre retorno pra me divertir – e aprender. 

Voltemos a Mencken. Ele dizia que suas melhores ideias lhe vinham à mente na forma de sons. Pois Mencken escreveu mais de uma vez que “só existem dois tipos de música: a alemã e a ruim”. Os especialistas costumam afirmar que quem diz isso simplesmente nada sabe de música, é um amador. E que a afirmação é superextrahiperpreconceituosa. Ok, é mesmo. Em tempos de decolonização, soa mesmo monstruosa.

Mas é preciso situar Mencken no ambiente norte-americano da primeira metade do século XX, quando a dita “música clássica à europeia” chegava ao horário nobre das redes de televisão transmitindo coast-to-coast concertos sinfônicos – um dos que mais brilharam foi Leonard Bernstein. Em seu caso, as acusações são falsas. O polemista político e cultural fez da música – clássica e alemã – uma ocupação central em sua vida. Desde os 8 anos, quando começou a estudar música. E já em seu primeiro emprego como jornalista usava as horas vagas para fazer crítica de concertos.

Durante 44 anos manteve em Baltimore o Saturday Night Club, uma associação informal de amantes da música que se reunia todo sábado para beber (muito), falar e fazer música de câmara. Ele organizava o repertório e cuidava das partituras. Fez arranjos de peças de terceiros, reduções de sinfonias para pequenas formações e até estreou por lá algumas de suas composições. O clube tinha em torno de 500 partituras.    

Num sábado de 1931, quando perguntou o que tocariam, se o sexteto de Brahms ou um quinteto de Mozart, um dos músicos argumentou que deveriam programar com antecedência o repertório, para cada um preparar bem sua parte. Fez-se um silêncio terrível. Ora, a graça estava justamente em escolher a música de acordo com o mood e o nível etílico dos participantes. Então, Mencken cortou o silêncio e propôs uma colcha de retalhos tecida só com suas maiores paixões: "Vamos tocar hoje uma nova sinfonia, feita com o primeiro movimento da Eroica de Beethoven, o segundo movimento da sinfonia Surpresa de Haydn, o Scherzo da Escocesa de Mendelssohn e o finale da Primeira sinfonia de Brahms."

Além disso, utilizou, em sua longa carreira de escriba público, nada menos do que 28 pseudônimos, alguns só para a música. Atwood C. Bellamy, por exemplo, só usava para fazer crítica de discos. 

O mais importante: jamais pactuou com ideias feitas e dogmas. Tudo o que disse e escreveu sobre música foi baseado na experiência e no aprendizado pessoal.  

A superioridade da música em relação às demais artes foi um de seus motes preferidos. "Pode-se dominar a técnica da poesia ou da novela em dez dias, e a do drama em três semanas, mas nem mesmo o maior dos gênios poderia escrever uma fuga sem uma longa e penosa preparação", disse. A prática diária da música, durante mais de meio século, levou-o a dizer que "não conheço outra arte que exija um treinamento profissional tão elaborado".   

O maior perigo é que a música é difícil para os músicos, mas fácil para pedantes e idiotas presunçosos. "É por isso que a música é um playground permanente onde chafurdam os imbecis que adoram chocar a burguesia com esgares de virtuosidade." 

Elitista que detestava o esnobismo, Mencken atribuía a  apenas 10% dos frequentadores de concertos a fatia dos que de fato estão lá para ouvir música ou extrair algum prazer de sua audição. "Os outros 90% são atraídos pelos picaretas travestidos de maestros e músicos. Quando o compositor também é um picareta, então, o prazer duplica." 

Por trás disso, está a ideia de que é impossível educar as massas e elevar o seu gosto, até que elas adorem Beethoven e Brahms. "O defeito básico dessa teoria é que não se pode implantar o gosto em ninguém. Ou ele nasce com a pessoa, ou não. Se a resposta é positiva, então ele ouvirá música fazendo qualquer sacrifício – mesmo que o Inferno congele. Caso contrário, ficará indiferente, não importa quantas toneladas de educação sejam despejadas nele." E conclui: “Juntando as populações dos Estados de Alabama, Arkansas e Idaho, não há mais do que 100 genuínos amantes da música. Em Nova York, uma em cada mil pessoas merece ser assim qualificada”.

Mencken retratado por Carl Vnn Vechten [Reprodução]
Mencken retratado por Carl Vnn Vechten [Reprodução]

 

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