Um projeto como o Atelier de Composição Lírica do Theatro São Pedro se faz de várias camadas. A mais evidente delas é, por certo, a criação de um repertório de novas óperas. O que se viu no último fim de semana no centenário palco paulistano, no entanto, vai além da elaboração de novos produtos culturais.
Apresentadas entre 26 e 29 de outubro, as três obras resultantes da segunda edição do projeto são frutos de um investimento direto no fomento de uma cadeia produtiva muito específica. Elas foram concebidas por seis jovens talentos, selecionados via edital, sob orientação de João Luiz Sampaio, Alexandre Dal Farra e Flo Menezes.
Esse contexto proporcionou não só uma imersão de novos compositores e libretistas no universo lírico por meio de aulas teóricas e práticas com cantores, diretores cênicos e músicos, mas também uma reflexão crítica sobre a pertinência dessa linguagem nos dias de hoje, refletida nos três trabalhos.
Isso se dá de diferentes formas, costuradas pela direção musical de Leonardo Labrada e a direção cênica de Inês Bushatsky, responsável por conectar os atos curtos em palco aberto, ressaltando o processo de construção deles ao revelar à plateia a atuação dos técnicos de palcos entre um e outro.
Vem da dramaturgia de Gota d'Água a inspiração para Gota Tártara: uma ópera-pesadelo. Para compor o libreto, Sofia Boito adaptou um conto de sua autoria no qual aprofunda a crítica social já pincelada na peça de Chico Buarque e Paulo Pontes, mantendo nele os ecos do mito grego de Medeia.
Na nova produção, sai de cena uma Joana enlouquecida por ter sido abandonada por Jasão e entra no lugar uma mãe solteira atormentada pela miséria extrema e diante de uma medida drástica para livrar o filho da fome.
A cenografia de Fernando Passetti evidencia o drama ao apresentar a penúria da mulher em contraste com a abundância de um supermercado. Produtos diversos cruzam o palco em uma esteira rolante até caírem em um carrinho de compras. Enquanto isso, a atendente do caixa narra a tragédia da mulher como um fato trivial do cotidiano. Essa visão é contraposta pelo discurso em primeira pessoa da própria protagonista, enfatizando o turbilhão psicológico provocado pela situação vivida por ela.
A crueza da ambientação é acentuada por alguns poucos focos de luz fria que cortam a penumbra, desenhados por Aline Santini, e pela melodia quase incidental composta por Franciele Regina, na qual os contrastes entre graves e agudos do piano impõem certa aura de horror. Por vezes, o canto é interrompido pelo recitativo, como se o refinamento da voz lírica não desse conta de abarcar a secura daquelas palavras.
Esse engasgo faz um bem-vindo contraponto com a obra seguinte. Entre-Veias: uma ópera de entranhas imagina como seria uma peça estrelada por um vírus, e o primeiro ato do insólito libreto criado por Jaoa de Mello passa justamente pelo desafio de um ser sem vida conseguir materializar emoções, narrativas e sensações de forma verbal.
No contexto do Atelier, essa jornada espelha o próprio trabalho da criação do zero de uma ópera e sua busca pelas notas certas para cada palavra, em um fino equilíbrio de estruturação de sentidos. A composição de Giovanni Porfirio transpõe para o campo sonoro os murmúrios e fonemas emitidos pelo vírus no processo de elaboração de palavras, explorando a riqueza dos vocábulos em diálogo com os demais instrumentos, apresentados em registros dissonantes e, por vezes, com efeito cômico.
Enquanto a música evoca o caos de uma doença agindo de forma errante em sua missão de se multiplicar até já não existir mais um corpo onde atuar, a cenografia e a dramaturgia seguem uma linha mais sóbria, com pouca movimentação espacial do trio de cantores formado por Laiana Oliveira, Manuela Freua e Vinícius Atique. Cabe, portanto, aos figurinos de Awa Guimarães ilustrar as recorrentes mutações e sensações do vírus por meio de fitas de LED em constante mudança de cor.
As reflexões formalistas suscitadas em Entre-Veias dão lugar a questionamentos escancaradamente debochados em Casa Verdi: meta-ópera em ato único. Para os fãs do universo lírico, o libreto escrito por João Crepschi se revela quase como um bingo de referências de tão povoado por personagens de óperas icônicas e cantores renomados de diferentes gerações.
O título remete a uma casa de repouso instituída pelo próprio Verdi no século XIX para acolher artistas sem recursos durante sua aposentadoria. Neste caso, ela aparece com ares de manicômio, na forma de um diminuto palco dentro do grande palco do São Pedro, um espaço apertado para moradores afeitos a manias de grandeza, enclausurados nos estereótipos de personalidade mais superficiais que a história lhes legou.
Os moradores, no caso, são nomes como Maria Callas, Jonas Kaufmann, Renata Tebaldi, Luiza Tetrazzini, Luciano Pavarotti… A lista é longa e, com o passar do ato, novos personagens surgem de forma desenfreada, como o “público ortodoxo” revoltado com um final alternativo para Carmen na qual a protagonista mata Don José ou mesmo uma "prima donna" denunciando o assédio de um figurão da música clássica.
Com isso, o que começa aparentemente como um delírio coletivo de verve satírica acaba se transformando em uma ácida revisão do noticiário em torno do mundo lírico, cutucando não apenas quem produz ópera, mas também quem a consome. As alusões a episódios recentes vão sendo feitas uma atrás da outra, de forma cada vez mais rápida, na mesma velocidade com a qual passamos o dedo pela tela do celular, ou seja, sem conseguir processar realmente as informações a nossa frente.
A composição de Caio Csizmar acompanha esse desenrolar, sugerindo novos caminhos melódicos a cada desvio temático proposto pelo texto, produzindo uma inconstância que desestabiliza um espectador à deriva, sem âncoras na qual se apoiar.
Diante desse cenário anárquico, a interrupção sonora do final é percebida a princípio como um respiro, mas logo se torna incômoda, em especial, pela frase final, recitada em tutti: “A música: este último refúgio dos que não têm nenhuma salvação”.
A provocação, felizmente, não deve acabar por aqui. A terceira edição do Atelier de Composição Lírica já está em andamento, com o processo de seleção da nova turma atualmente em curso. Afinal, a ópera está morta. Vida longa à ópera.
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