Sobre pesquisa e generosidade: pequena homenagem a Flavio Silva

por Camila Fresca 01/11/2019

Na madrugada do dia 8 de outubro, faleceu o musicólogo Flavio Silva. Flavio morreu dormindo em seu apartamento, em Copacabana, Rio de Janeiro, onde morava com sua esposa, a pianista Laís de Souza Brasil.

O nome de Flavio talvez não seja muito conhecido fora do círculo de pesquisadores musicais, a despeito de sua importância. Nascido em Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul, em 1939, ele se mudou para o Rio de Janeiro em 1958 para dar continuidade aos estudos musicais, tendo aulas com Esther Scliar e Guerra-Peixe, entre outros. Estudou musicologia em Paris e, em 1977, ingressou na então recém-criada Funarte (Fundação Nacional das Artes).

Lá, onde trabalhou por 40 anos, Flavio coordenou programas como a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, o Prêmio Funarte de Concertos Didáticos, os Painéis Funarte de Regência Coral e edições de partituras.

Minha primeira referência de Flavio Silva tem a ver com um estudo referencial sobre Camargo Guarnieri organizado por ele e lançado pela Funarte em 2001, Camargo Guarnieri: o tempo e a música. O contato pessoal aconteceu anos depois.

Leitor assíduo e atento da Revista CONCERTO, Flavio Silva costumava enviar cartas à redação comentado matérias ou mesmo fazendo correções. Confesso que tive certo receio quando, lá atrás, chegaram as primeiras mensagens que comentavam minhas matérias ou então dirigidas a mim. Com o tempo, porém, descobri que por trás de um aparente trato ríspido, Flavio Silva era uma pessoa gentil e muito generosa. 

O primeiro contato pessoal com ele foi ainda nos primeiros anos de pós-graduação, por volta de 2006, quando pesquisava sobre violino brasileiro para um mestrado sobre o compositor Flausino Vale. Desde nossa primeira conversa, quando soube de minha área de interesse na pesquisa, Flavio mandava e-mails com documentos, sugestão de bibliografia ou ainda recortes de jornal. Esse envio sistemático de materiais continuou, inclusive, mesmo depois da pesquisa concluída.

Flavio Silva [Divulgação / Funarte]
Flavio Silva [Divulgação / Funarte]

Visitei-o uma vez na Funarte, e estive no Rio para conferir edições da Bienal de Música Contemporânea, como jornalista, em duas ocasiões. Continuamos a trocar documentação de pesquisa. Mais recentemente, para um curso que dei sobre Villa-Lobos, ele me enviou vídeos raros que mostram o compositor em ação, e não descansou enquanto não consegui acessá-los (por conta de dificuldades com o formato do material). Trocamos outras mensagens sobre o assunto e, no ano passado, acompanhei um curso seu no Sesc em São Paulo, “O Brasil na Feira Mundial de Nova York de 1939”, no qual destacava a música de Villa-Lobos. As aulas traziam, como não poderia deixar de ser, dados inéditos, garimpados por meio do trabalho minucioso do pesquisador, que também incluía rica iconografia.

Creio que o curso foi uma forma de Flavio Silva ocupar o tempo livre que passou a ter após sair da Funarte, em 2017. Intelectualmente ainda muito ativo, passou a ter mais tempo para a pesquisa. Da mesma forma, passou a dedicar-se mais à Academia Brasileira de Música, da qual era membro. Organizou outros cursos, me mandou os resumos e há alguns meses conversamos sobre a possibilidade dele dar alguns em São Paulo num futuro próximo. 

Trocamos as últimas mensagens em setembro desse ano. O e-mail com arquivo anexado dizia simplesmente “para sua apreciação / abraço, Flavio”. O texto, intitulado “Definições e elucubrações” era uma espécie de ensaio sobre a música erudita (ele rejeitava o termo “clássica”) a partir da notação musical. Naquele momento, apenas tive tempo de dar uma olhada geral antes de responder que leria atentamente e enviaria minhas considerações assim que possível – o que infelizmente não fiz a tempo.

Lendo o texto agora, vejo que se trata de uma reflexão abrangente sobre música, pontuando as diferenças entre as músicas eruditas de diferentes culturas, e estabelecendo as fronteiras entre estas e a música folclórica a partir da evolução da notação musical europeia (dos neumas para a pauta) e tratando, finalmente, do surgimento da música popular. O artigo chega ao Brasil por meio de uma discussão sobre “instrumentos e musicalidades negras no Brasil”.

O texto, didático e ao mesmo tempo de grande erudição, esmiúça a questão da notação musical e suas consequências determinantes para o desenvolvimento da música europeia. Lendo a homenagem do professor Jorge Coli a Flavio Silva na Revista CONCERTO de novembro, descubro que esse assunto era uma de suas especialidades, e que Coli o estimulava a escrever um livro sobre notação musical. 

Aliás, eu falei em “trato ríspido” lá no começo, mas Jorge Coli definiu muito melhor esse traço da personalidade do Flavio: tratava-se de honestidade e franqueza, de alguém que “dizia o que pensava, não se preocupando com consequências (...) agia por puro e sincero amor à música”.

Sou grata à generosidade de Flavio Silva no início de minha trajetória de pesquisa, e me sinto igualmente feliz em perceber que, de alguma forma, eu desfrutava de sua confiança, no sentido dele me eleger como uma interlocutora de seu trabalho intelectual.

Tenho certeza que suas pesquisas podem inspirar outros jovens musicólogos, e espero que seu legado seja reconhecido. A Academia Brasileira de Música fará uma homenagem a Flavio Silva no próximo dia 8 de novembro, em sua sede, tendo como oradores Flávia Toni e Manoel Corrêa do Lago. 

Leia mais
Revista CONCERTO
Flavio Silva, por Jorge Coli
Opinião O velho novo Theatro São Pedro, por João Luiz Sampaio
Colunistas Leia outros textos de Camila Fresca
 

Curtir