Pense nos documentários audiovisuais que contam as biografias de músicos, compositores e/ou intérpretes famosos. Você com certeza vai se lembrar de “momentos emocionantes” neste ou naquele filme. De performances que te levaram às lágrimas ou, ao contrário, a um estado de exaltação. Assisti-los quase sempre nos leva a pensar que a música nos torna melhores.
Ora, isso não deixa de ser um culto do fenômeno do herói, de todos os obstáculos que enfrentou e venceu para “impor” seu talento. De intérprete ou compositor.
Os documentários, portanto, são um dos produtos que melhor fazem esta mediação entre quem “produz” música e quem a “consome”. Uso de propósito estes dois verbos entre aspas, porque tudo o que estas histórias formidáveis, magníficas, nos querem é contar que o gênio triunfa sobe tudo e todos, subjuga o mundo aos seus pés.
E se eu contar a vocês que no último dia 19, morreu, aos 89 anos, o cineasta que bateu de frente com todo este “constructo” ideológico romantizado e realizou não “o melhor” ou “o mais bem feito”, mas muito provavelmente o único documentário que mostra o fazer musical como “trabalho”?
Ou seja, o músico e compositor é um trabalhador como outro qualquer. O crítico espanhol José Luis Télles afirmou, anos atrás, que o francês Jean-Marie Straub – este é seu nome –, sempre em parceria com sua mulher Danièle Huillet, representa “talvez, a mais lúcida e radical tentativa da prática de um cinema verdadeiramente marxista, um verdadeiro campeão do materialismo dialético cinematográfico”.
Télles escrevia, mais de dez anos atrás, a propósito do lançamento de um DVD contendo A Crônica de Anna Magdalena Bach, um doc de 93 minutos sobre Johann Sebastian Bach a partir da ótica de sua segunda esposa, Anna Magdalena Bach.
Não conheço o restante da obra de Straub-Huillet. Parto apenas da minha convivência com os docs com temática musical, ao longo do tempo. Assistir a este doc é ter diante de você o próprio Bach, sem os rótulos e a pompa que lhe pregaram na imagem. Não vou contar tudo porque tira a graça. Mas quem personifica o compositor é o cravista holandês Gustav Leonhardt. E todos os que tocam música, vestidos à la século XVIII, com perucas e tudo o mais, são músicos. Isto é, a música é feita diante de nossos olhos. O casal partiu de todas as poucas fontes disponíveis, usa cartas de Bach, um ou outro texto de Anna Magdalena.
O respeito pelas fontes, a câmera fixa, sem grandes pirotécnicas visuais – aliás, sem nenhuma pirotecnia – é a música sendo feita diante de nossos olhos e ouvidos. Ao adotar este comportamento, Straub compartilha com o espectador o respeito pelo compositor, o respeito pela música e a observância rigorosa das fontes pesquisadas. Ele nos obriga a encarar de frente este “novo” Bach, que na verdade é o Bach real. Ele não quer nos emocionar.
José Luis Télles é radical ao afirmar que este “é o único filme realmente musical da história, o único que faz da música sua única matéria significativa, que descarta qualquer possibilidade de operação ideológica idealista”. Concordo.
Bach sem glamour
O filme – o primeiro longa do casal – realizado em 1967 foi violentamente rechaçado justamente pelo público ao qual se destinava. Pudera. Straub-Huillet mexeram com um dos dogmas do frequentador de concertos e consumidor de gravações, tal como enunciado pelo musicólogo Christopher Small (1927-2011). Small diz que este público é como o filhinho de 3 anos que ouve toda noite o pai contar-lhe uma estorinha antes de dormir. Mas quando este floreia um pouco o enredo ou acrescenta um ou outro adjetivo, o filhinho reclama aos gritos. Quer ouvir a estorinha tal como ouviu pela primeira vez. Ele a quer repetida. Não admite modificações. Mais do mesmo.
Não é parecido com o nosso comportamento nas salas de concerto, querendo que os músicos no palco toquem exatamente do mesmo jeito que a nossa gravação preferida? Rechaçamos interpretações alternativas que não estão no nosso horizonte.
Há muito a dizer sobre A crônica de Anna Magdalena Bach, doc de 1967 de Straub-Huillet. Termino fazendo um convite a você, se me lê até aqui. O doc está disponível na íntegra no youtube, e com legendas em português; clique aqui.
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