Uma incrível coincidência

por João Marcos Coelho 27/08/2019

Não se monta do dia para a noite um concerto como “Voos de Villa – impressões rápidas sobre todo o Brasil”, realizado nos últimos dias 16 e 17 deste mês no Auditório Ibirapuera, em São Paulo. O maestro Gil Jardim, de 61 anos, levou não meses, mas anos, para dar forma a esta “viagem” musical fantástica pelo universo de Villa-Lobos. Meio sem nossos ouvidos perceberem – a suíte de 16 números para 17 músicos, incluindo Clarisse Assad, tem uma duração de 90 minutos, sem interrupção –, a música de Villa vai se transmudando nas raízes populares brasileiras de tal modo que já não se sabe mais o que é Villa e o que é música de tradição oral – nem o que é mérito de instrumentação ou sons da natureza, tamanha a fluência da passagem das notas villalobianas diluindo-se magicamente nos ruídos infinitos da floresta.

Das dezesseis partes da suíte imaginada por Gil Jardim, apenas a primeira, “Revoada”, é por ele assinada. Uma espécie de prólogo, apresentando as maravilhas sonoras da floresta amazônica a nossos ouvidos. Poucos minutos e entramos todos no clima. Daí em diante, desfilam obras do Villa – inteiramente reinventadas, pois ora sofreram reduções para a formação sintomaticamente intitulada Villa Brasil Ensemble (como uma linda leitura do Uirapuru, o pequeno pássaro negro da floresta amazônica), ora com acréscimos que, em vez de desvirtuarem o que os puristas costumam chamar de “a sagrada obra de arte” tal como está na partitura, crescem assustadoramente em qualidade graças à percussão refinada de Ari Colares e aos encantos da voz de Clarisse Assad (para mim, uma descoberta) em um punhado de belas canções do Villa.

Poderia ter sido apenas mais um concerto interessantíssimo, muito bem concebido e realizado. Mas ele aconteceu justamente na semana em que os incêndios e os desmatamentos da Floresta Amazônica ultrapassaram as fronteiras brasileiras e ocuparam as principais manchetes das mídias tradicionais e das redes sociais no mundo inteiro. O G7 – que reúne os sete países mais industrializados do planeta – colocou o tema como assunto central da reunião que aconteceu em seguida em Paris. 

[Divulgação]
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Assim, de repente, “Voos de Villa – impressões rápidas sobre todo o Brasil” adquiriu status de grito de revolta em relação ao que está acontecendo com a Amazônia. A música – e ainda mais clássica –, imaginem, de repente sintetiza e assume uma postura de denúncia dos crimes ambientais que lá ocorrem. E sem nenhum slogan, nenhuma palavra de ordem explícita. 

Apenas a música de Villa-Lobos. E interpretada de modo arrebatador por músicos que desfrutam de sua maturidade artística plena. Casos específicos de Antonio Carlos Carrasqueira, que há pouco lançou um livro onde propõe um método de ensino de flauta baseado na cultura brasileira, e não em fontes europeias; do percussionista Ari Colares, de 55 anos, que começou estudando no CLAM do Zimbo Trio, depois estudou “percussão erudita” na Escola Municipal de Música de São Paulo e fez bacharelado em Percussão na ECA-USP. Mestre da percussão inclusiva, caiu como uma luva na música do Villa.

E do próprio Gil Jardim, há 35 anos no Departamento de Música da ECA-USP e há 18 liderando a Ocam – Orquestra de Câmara da ECA-USP. Ele fez de Villa-Lobos o mote de sua vida como artista. Escreveu livro, gravou um CD reproduzindo o repertório do concerto de Villa-Lobos em Paris em 1923 e agora consegue a mágica de sintetizar uma vida de pesquisa numa extraordinária suíte-síntese de toda esta trajetória.

Outro músico que participou do espetáculo foi o saxofonista Douglas Braga, nascido na Vila Brasilândia, periferia de São Paulo. Na beira dos 30 anos, tem no currículo também concurso vencido em Paris em 2012. Curiosamente, quem conhece seu primeiro CD, “A música livre de Douglas Braga”, lançado ano passado, percebe certa simetria com os voos do Villa de Jardim: basta ouvir sua Sinfonia urbana de câmara, com 4 movimentos que se intitulam: Corpo, Mente, Periferia e Cidade). Douglas define como um estalo o momento em que se deu conta de que seu caminho era beber das mais variadas fontes para compor uma música profundamente inclusiva, abraçando todas as vertentes e variantes da música brasileira – mas ao mesmo tempo bastante antenada com as tendências da música contemporânea internacional.  Uai, isso está muito próximo do que Villa-Lobos apregoou tantas vezes – e praticou com uma modernidade a toda prova.

Gil Jardim escolheu a dedo seus parceiros para este iluminado voo. Neymar Dias, por exemplo, é mestre tanto no contrabaixo quanto na viola caipira. Pois ele empunhou os dois instrumentos: o primeiro na Cantilena das Bachianas brasileiras nº 5; e a viola em canções como Modinha

O maestro e idealizador do projeto quer viabilizar uma turnê por todo o país daqui em diante. “E até no exterior”, avisa. Tomara. Porque, nos próximos anos, não podemos ser lembrados internacionalmente só como o país rastaquera que desmata e incendia a maior floresta tropical do planeta. 

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Gil Jardim [Divulgação]
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