A compositora, que faria 110 anos, permitiu transformar-se a cada encontro com a arte; sua obra deve ser celebrada
Em 1948, um grupo de trinta brasileiros chegou a Veneza para participar do XI Festival Internacional de Música Contemporânea, dirigido por Hermann Scherchen. O intercâmbio aconteceu por meio do ex-aluno do maestro, Hans-Joachim Koellreutter. Já radicado no Brasil e em plena atividade com o grupo Música Viva, ele fora convidado por Scherchen como assistente.
O compositor Luigi Nono participou do festival, junto com Bruno Maderna. Deste período ele relembra um bom encontro: “Havia uma pianista-compositora de grande talento, que se chamava Eunice Catunda. Através dela tivemos as primeiras informações sobre os ritmos de Mato Grosso, antecipando, num certo sentido, a lição que nos viria de Varèse”.
![Da esquerda para a direita, compositoras à bordo do Navio F. Morosini, em 1948: Esther Scliar, Eunice Katunda, Sonia Born e Geni Marcondes. [Reprodução/Louvação à Eunice, tese de Iracele Livero]](/sites/default/files/inline-images/w-katunda_1.jpg)
A afinidade não era apenas musical. Os três eram comunistas e tinham muito o que conversar sobre o papel da arte nesse contexto. Maderna e Nono, de um lado, eram animados por uma força antifascista condizente com o final da Segunda Guerra (assim como Scherchen e Koeullreutter); e Katunda, preocupada em realizar uma música socialmente engajada, militava no Partido Comunista com Claudio Santoro, Guerra-Peixe e Edino Krieger, com quem dividia participação no grupo Música Viva. As atividades incluíam programas no rádio, cursos, boletim próprio e recitais e concertos dos quais Katunda participava como a exímia pianista que era.
O momento era efervescente. Aos 33 anos, Eunice Katunda vivia o período mais importante de sua vida. À família, escreveu: “Esta carta é mais uma carta para o Brasil, de Macunaíma que veio à Europa e se transformou mais uma vez”.
Preceitos em defesa de uma música preocupada com a sociedade de sua época estão passados a limpo no manifesto Música Viva, de 1946. O texto expressa desde o entendimento de que “a arte só pode florescer quando as forças produtivas tiverem atingido um certo nível de desenvolvimento”, até a defesa de uma “arte musical que seja a expressão real da época e da sociedade”, refutando toda “arte acadêmica, negação da própria arte”.
O texto é marxista à medula, e o Festival de 1948 em Veneza unia artistas de mesma ideologia. Mas isso não foi forte o suficiente para confrontar as novas diretrizes do realismo socialista, divulgado naquele mesmo ano, em maio, durante a Conferência de Praga. Organizada pela União dos Compositores da Tchecoslováquia, nela foram condenadas as tendências formalistas e abstratas da música burguesa, em defesa de uma abordagem mais acessível e para o povo.
Era urgente um posicionamento. Claudio Santoro foi o primeiro a aderir, fortemente impactado sobretudo porque tinha assistido à conferência. De volta ao Brasil, escreveu para a Revista Fundamentos em outubro: “Sejamos consequentes com nossas ideias na nossa arte, e não tenhamos receio de proclamar que não é do alto da torre de marfim que falamos ao povo, é participando de suas lutas que poderemos refletir um conteúdo verdadeiramente democrático e progressista”.
Mas Eunice Katunda, nossa Macunaíma, ainda não estava totalmente convencida. Rebatia: “Não há contradição entre o dodecafonismo e o manifesto de Praga. Há sim um sectarismo geral que muitas vezes impede a compreensão clara do problema. Nós somos, queiramos ou não, artistas que representam uma crise estética. O fato de nossa música não ser popular não quer dizer que não sejamos sociais. No entanto somos bastante honestos para não fingir que somos povo, que expressamos o povo. Nós somos uma geração sacrificada”.
A citação defende a música de vanguarda, mas ao mesmo tempo revela um impasse: compreender o serialismo como produto do social não significa que sua poética seja popular. Como depor o muro que separa o artista de seu povo? A pergunta, em suspenso, tornava-se cada vez mais premente.
![Eunice (centro) e compatriotas à bordo do F. Morosini, em 1948. [Reprodução/Louvação à Eunice, tese de Iracele Livero]](/sites/default/files/inline-images/w-katunda_2.jpg)
Até então imersa na técnica serial, Katunda havia acabado de estrear seus Cantos à morte em Veneza. O Quinteto Schoenberg, de 1946, tinha sido estreado em Bruxelas, utilizando uma formação similar à que o compositor vienense empregou em Pierrot Lunaire; e suas Quatro epígrafes, de 1949, mostram o desenvolvimento de uma mesma série em quatro momentos.
A música dodecafônica, bode expiatório da diretriz soviética, fora desenvolvida por um artista que, apesar de europeu, não era burguês. Schoenberg, quando tinha a mesma idade dos jovens Santoro, Katunda, Maderna e Nono, ainda lutava por reconhecimento, buscando uma posição como professor que o sustentasse em Viena. Se a torre de marfim é um cômodo quente, confortável e imune a intempéries, o Schoenberg que teve que fugir para os Estados Unidos nos anos 30 certamente estava fora dela.
Posicionamentos categóricos à esquerda e à direita reduziam os radicalismos estéticos experimentados nessa época e passavam ao largo de críticas mais apuradas. A recusa marcou um período nebuloso. Reduzir a Segunda Escola de Viena a um “formalismo burguês”, sem compreender a realidade pela qual passava a Europa e o papel da arte nesse sentido, é necessariamente anti-marxista.
Como coloca Roberto Schwarz, em texto de dezembro de 2023 para a Revista Piauí, “é claro que o formalismo das vanguardas não era descaso pela humanidade. Era, ao contrário, a convicção de que transformações formais levavam a um mundo novo. Assim, as revoluções formais não eram inaceitáveis só para o senso comum burguês e para o valor-eternismo da cultura tradicional, mas também para o humanismo de fachada dos partidos comunistas, com sua função disciplinar”.
É inestimável a produção acadêmica que tem se dedicado à obra de Katunda. As pesquisas musicológicas, que resgatam sua busca pelo entendimento do folclore e de suas implicações e que opõem as diferentes poéticas da compositora; e as pesquisas no campo da performance, que têm trazido suas obras de volta à vida por meio de novas edições, interpretações e registros
Sejamos honestos o suficiente para admitir que a afirmação de Schwarz é possível apenas com distanciamento histórico, ainda que o crítico literário já se opusesse à autocracia de Stalin desde pelo menos os anos 1960. Já a perspectiva nos trópicos do final da década de 1940 era outra. As interrogações em torno do debate sobre o que seria uma música “nacional” empilhavam-se em livros que sempre estiveram na cabeceira de Eunice Katunda, sobretudo a partir dos escritos de Mário de Andrade. O que o realismo socialista de Jdanov fez foi apenas sublinhá-las ainda mais.
Submeter-se a técnicas europeias não era reafirmar uma imposição colonialista que desde sempre impediu o desenvolvimento de uma tradição brasileira? Não era necessário pensar o Brasil por si só, a partir de seus próprios dilemas, sua própria realidade material? Katunda acabou por ceder à nova tomada de partido definitivamente após a publicação da Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, escrita por Camargo Guarnieri (seu ex-professor) em 1950.
Um tom mais categórico permeia o artigo Atonalismo, dodecafonia e música nacional, publicado em 1952 na Revista Fundamentos. A poética de Schoenberg, em quem Katunda já havia se inspirado, virou “o marco final do mundo musical de uma classe, de uma elite que já perdera a consciência da própria dignidade”. Macunaíma havia se transformado mais uma vez.
O trabalho com materiais musicais brasileiros não era exatamente uma novidade na trajetória de Eunice Katunda, mas sim uma espécie de “volta ao lar”. Ela, que já tinha sido aluna de Camargo Guarnieri antes dos anos de Música Viva, já compusera com temas populares, tinha profunda admiração por Villa-Lobos – de quem interpretou seu Rudepoema – e chegou a interpretar obras de Oscar Lorenzo Fernandez e do próprio Guarnieri.
![A compositora Eunice Katunda [Reprodução]](/sites/default/files/inline-images/w-katunda_3.jpg)
Mas a obra nacional da Eunice Katunda madura é muito diferente daquela composta em seus anos de juventude. Agora imbuída de uma experiência musical profunda, a compositora se vê apta a de fato criar com materiais tipicamente brasileiros para além das variações, entendendo esses materiais de uma maneira mais ampla. Cantata Brasília e Sonata de louvação são dois exemplos.
Além disso, seus textos sobre a Bahia nos revelam uma artista plena em sua própria identidade poética. Escreve ela em Bahia dos cinco sentidos: “O artista criador sofre mais diretamente a influência da terra e das gentes de Salvador. Essa influência resulta sempre em benefício da expressão artística nacional, cada vez mais ampla, mais grandiosa e rica, alimentada pela Bahia, que insufla em nós esse sopro de vida que é passado vivo no presente, essa esplêndida realidade de povo, esse barroco que lá, deixa de ser português para tornar-se inteiramente nosso”.
Esses anos baianos, ainda na década de 1950, foram marcados também espiritualmente, a partir da iniciação da compositora no candomblé. Como aponta Iracele Livero em sua tese, “a influência vai além do interesse musical em classificar e categorizar ritmos e melodias. Bastante mística, se torna contrária à utilização e elaboração artística de manifestações mais autênticas e mais sagradas que qualquer elaboração intelectual”.
Além disso, a parceria entre Katunda e o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger, ocorrida nessa mesma época, renderia um texto por si só. A pesquisadora Angela Lühning, da Universidade Federal da Bahia, nos oferece um relato completo dessa época – um link para esse artigo está disponível no final deste texto.
Ainda que estivesse imersa no Brasil e suas linguagens, Katunda não deixou de apresentar peças de Stravinsky, Berg, Bartók e do próprio Schoenberg. Seu afastamento de Koellreutter não seria esquecido e seria sentido décadas depois. Um breve retorno às técnicas experimentais está em Expressão anímica, dedicada ao antigo mestre.
Quantas vezes Eunice Katunda se transformou? Era ela nacionalista, vanguardista, burguesa ou comunista? Onde encaixar Eunice Katunda? Carlos Kater, responsável pela base da pesquisa de fontes primárias da compositora – e a quem este texto deve muitas das referências – sintetiza: “Katunda não confinou seu trabalho, nem tampouco sua vida, aos limites vigentes; ousou avançar fronteiras de várias naturezas. Mulher exótica, musicista brasileira, a arte lhe significou algo extenso, muito mais amplo do que uma mera definição momentânea”.
Para compreender toda essa complexidade é inestimável a produção acadêmica que tem se dedicado à obra de Katunda. As pesquisas musicológicas, que resgatam sua busca pelo entendimento do folclore e de suas implicações e que opõem as diferentes poéticas da compositora; e as pesquisas no campo da performance, que têm trazido suas obras de volta à vida por meio de novas edições, interpretações e registros.
Em 2025, Eunice Katunda faria 110 anos. Sua obra merece ser conhecida. Ela nos deixa uma lição: encarar a arte com honestidade, coragem e paixão, permitindo transformar-se a cada encontro.
Conheça mais sobre a trajetória de Eunice Katunda:
Louvação a Eunice: um estudo de análise de obras para piano de Eunice Katunda
Tese da pesquisadora e pianista Iracele Livero defendida na Unicamp. O texto traz informações e imagens importantes da biografia de Katunda. Acesse aqui.
Eunice Katunda: musicista brasileira
Texto-referência de Carlos Kater que traz a biografia da compositora e todos os textos e cartas escritos por ela. Veja aqui.
Em seu site, Carlos Kater reúne os manuscritos de Katunda, dentre outros documentos que incluem cartas e programas de concerto. Acesse aqui.
A composição de Eunice Katunda no contexto político e musical brasileiro
Panorama interessante sobre o contexto histórico que perpassava as atividades do Música Viva e a produção de Eunice Katunda. Escrito por Marisa Milan, Eliana Monteiro da Silva e Amilcar Zani. Acesse aqui.
Eunice Katunda e Pierre Verger: documentações pessoais, processos criativos e diálogos afro-brasileiros nos anos 1950 e 1960
Artigo de Angela Lühning a respeito dos anos de Katunda passados na Bahia. Acesse aqui.
O Debate no campo do nacionalismo musical no Brasil dos anos 1940 e 1950: O compositor Guerra Peixe
Dissertação escrita pelo historiador André Egg e defendida na Universidade Federal do Paraná. O texto não aborda especificamente a trajetória de Katunda, mas nos oferece uma discussão interessante sobre as rupturas ocorridas após a Conferência de Praga em face do problema do nacionalismo musical brasileiro. Acesse aqui.
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