Camerata Sé: projetos ousados em tempos de crise

No final de junho, um novo conjunto orquestral foi criado na cidade de São Paulo: a Camerata Sé, orquestra de câmara sediada na Catedral da Sé. A iniciativa é do maestro Martinho Lutero Galati, artista experiente e fundador, em 1970, do Coro Luther King e de conjuntos corais na Itália e em Moçambique. Atual presidente da Associação Brasileira de Regentes Corais, foi diretor artístico do Coral Paulistano entre 2013 e 2016. 

A proposta da Camerata é clara: especializar-se no acompanhamento de música coral. “Os coros que se dedicam ao repertório acompanhado tendem a ter um próprio grupo instrumental na interpretação das obras“, ele explica, citando a Academy of Saint Martin in the Fields em Londres e o Arnold Schoenberg Chor em Viena. “As orquestras sem tradição de acompanhamento coral são parceiras difíceis num trabalho refinado de interpretação. A afinação não temperada das vozes e a maleabilidade rítmica do discurso vocal por vezes disturba, desconcentra e até irrita o instrumentista de orquestra. Acompanhar coros é uma tarefa complexa, mas fascinante e requer prática. No Brasil não existe ainda esta tradição e nós queremos incentivá-la”, completa.

Martinho Lutero conta que a Camerata está em fase de implantação, a partir de um projeto aprovado pelo Ministério da Cidadania, com o patrocínio da Sabesp e o apoio da Catedral da Sé. O número de músicos varia entre 30 e 40, a depender do repertório. “As cordas são um contingente quase invariável, havendo mais maleabilidade nos sopros. É uma orquestra composta de professores, profissionais e estudantes. Temos dois ensaios fixos por semana e mais dois gerais nas vésperas dos concertos”, esclarece.

Segundo o maestro, a Catedral da Sé abraçou a ideia desde o início, tornando-se parceira do projeto. A Camerata ensaia na igreja duas manhãs por semana, e as pessoas que frequentam o templo podem acompanhar o processo e “se deliciar com a acústica encantadora”: “sim, porque é um erro o lugar comum que considera a acústica da Sé ruim. Nós descobrimos o espaço mágico para se fazer música na Catedral: o Coro sobre a entrada da nave, o lugar onde o arquiteto pensou para fazer música!” 

As apresentações da Camerata, no entanto, não se limitam ao espaço da catedral e devem acontecer em outros espaços da cidade – o conjunto já tocou no Centro Cultural São Paulo e na Igreja Santa Teresinha (Higienópolis), e em setembro se apresenta na Basílica Nossa Senhora do Carmo (Bela Vista).

Os primeiros concertos têm sido feitos com o Coro Luther King, mas a intenção da Camerata Sé é abrir a oportunidade de participação aos corais da cidade. O Luther King completa, em 2020, 50 anos de atividades ininterruptas. “Isso faz dele um dos mais antigos grupos vocais independentes da nossa cidade”, orgulha-se Martinho Lutero. “O grupo nasce num período muito difícil da vida brasileira sob o ponto de vista político-social, mas ao mesmo tempo num momento riquíssimo sob o aspecto cultural. O movimento coral paulistano era de uma pujança e qualidade notáveis”, relembra. A criação da Camerata Sé já faz parte dos projetos de comemoração do cinquentenário do Coro, que se intensificam no próximo ano.

Os dois concertos de inauguração do projeto foram dedicados a Beethoven, com a Missa em dó maior e a Sinfonia nº 1. Nos próximos dias, a Camerata faz outras quatro apresentações, com dois programas diferentes, mas todos com a Sinfonia nº 7 do compositor. “Beethoven não precisa de justificativas. É o mestre, o luminar do músico de hoje. Fazer Beethoven nos ensina e nos prepara para tudo o que veio depois”, afirma o maestro. “A Sétima é uma sinfonia que leva particularmente para a ‘cantabilidade’ dos instrumentos. Wagner a considerava como o verdadeiro início do romantismo, e há quem diga que ela é uma antecipação da Nona como linguagem, ou seja, uma sinfonia coral sem coro.”

Nos dias 30 de agosto e 1º de setembro, a sinfonia de Beethoven será acompanhada de Lux Aeterna, um réquiem escrito em 1997 pelo norte-americano Morten Laurdsen logo após a morte de sua mãe. Já nos dias 21 e 22 de setembro, a obra coral que completa o programa é a Missa Diligite, de Camargo Guarnieri (que contará com a filha do compositor, Tânia Guarnieri, como spalla), obra escrita para celebrar o quadragésimo aniversário de casamento de amigos do compositor. 

Propor empreitadas de fôlego em tempos difíceis é fazer a música participar das questões de seu tempo, acredita Martinho Lutero. “Meu ultimo grande mestre foi Luigi Nono, compositor italiano profundamente comprometido com a vanguarda técnica e estilística erudita europeia, mas ao mesmo tempo comprometido com o homem do seu tempo no sentido global – social, político e econômico. Com ele aprendi, entre outras coisas, que a música que não conversa com o seu tempo não tem razão de existir”.

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