As cartas de Lucia Branco, uma gigante do piano brasileiro

por Camila Fresca 05/03/2023

Divulgadas pelo Instituto Piano Brasileiro, cartas da pianista e professora a Nelson Freire noz faz ver por que ela foi uma figura tão importante para o piano no país

No final do ano passado, o incansável Alexandre Dias, fundador do Instituto Piano Brasileiro (IPB), divulgou uma joia: um áudio da grande pianista e professora Lucia Branco (1903-1973) interpretando o Scherzo nº 3 de Chopin [ouça aqui]. Por meio de investigações, Alexandre conseguiu determinar que a gravação, inédita e único registro disponível da pianista, havia sido feita em 1949, em sua residência no Rio de Janeiro. Provavelmente, Lucia se preparava para sua participação em um programa na Rádio Roquette Pinto em homenagem aos 100 anos de morte de Chopin, no qual proferiu uma palestra intitulada “Chopin, o poeta” e ilustrou algumas peças ao piano. 

O registro é valioso não apenas por sua raridade, mas pelo que nos revela. Lucia Branco estudou na Bélgica com Arthur De Greef, aluno de Liszt, na década de 1920. Ao ouvi-la tocar com tamanha energia, refinamento e paixão, fica claro que, com tal qualidade pianística, Lucia Branco poderia ter feito uma carreira internacional importante como solista. No entanto, como muitas mulheres (provavelmente devido às pressões sociais que sobre elas recaem), acabou por deixar de lado uma carreira profissional de concertista e dedicar-se ao ensino. Sorte do piano brasileiro, pois por suas mãos passaram algumas das maiores personalidades desse instrumento, como Nelson Freire, Arthur Moreira Lima, Jacques Klein, Jean Louis Steuerman e Tom Jobim. 

Sobre a professora Lucia Branco, sua notável competência e dedicação aos alunos, outros registros do IPB dão provas comoventes. Refiro-me a cartas relacionadas a um de seus ex-alunos, Nelson Freire (1944-2021), quando este tinha acabado de se mudar para a Europa, para estudar com Bruno Seidlhofer em Viena, usufruindo de uma bolsa de estudos concedida pelo presidente Juscelino Kubitschek. Para Lucia, estava claro que Nelson deveria vencer em primeiro lugar um grande concurso para conseguir iniciar uma carreira internacional. 

Em 13 de janeiro de 1960, ela escreve a ele respondendo a um pedido de conselho: Nelson queria deixar Viena para tomar algumas aulas em Paris com outro professor, Weissenberg. Lucia é contra, e intui que o pupilo não está se acertando com Seidlhofer. Ela acredita que ir a Paris tiraria Nelson de seu foco, a preparação para um concurso, e ainda criaria atritos com Seidlhofer, o que poderia lhe trazer problemas.

 

Seu tom é sempre afetuoso, por vezes maternal, mas direto e lúcido. Depois de expor argumentos pragmáticos e técnicos, ela tenta, sutilmente, aconselhar o jovem “Nelsinho” (como se refere a ele), de 15 anos:  “Agora, com o que é preciso ter cuidado é com o orgulho que, como Satanás tentou Jesus no alto da montanha, esta a espreita nessa hora... Ser simples, ser humilde diante da Beleza que Deus colocou ao alcance da vista privilegiada, deve ser o lema do artista. Acatar com simplicidade as observações de quem, com vista ainda mais apurada, possa distinguir algum detalhe que tenha sido inobservado”.

Ao final, palavras de estímulo e cheias de ternura ao ex-aluno, mas chamando-o à responsabilidade: “Pense que você já está um homem, conforme o retrato tão bonito que me mandou, o qual agradeço, e que o que você fizer nesse momento importantíssimo de sua vida terá caráter definitivo para seu futuro. Espero ansiosamente uma carta sua, contando minuciosamente e o que ficou resolvido”. 

Uma segunda carta de Lucia para Nelson, datada do dia 30 de março de 1960, é um documento impactante. O grande carinho e tom maternal permanecem, e por meio das palavras da professora percebemos que Nelson deveria estar passando por uma crise. Ela começa afirmando que as notícias que circulavam no Rio sobre ele eram preocupantes – “que você não está estudando, que anda levando uma vida de farra e dissipação” – e lembra-o de seus objetivos: “Nelson, meu filho, seu tempo é precioso e é preciso lembrar que a quarta parte de sua bolsa já se esgotou. Seis meses!” 

Como na carta anterior, Lucia cita Jacques Klein (1930-1982) como um modelo a ser seguido. Catoreze anos mais velho do que Nelson, Jacques também fora aluno de Lucia e Seidlhofer, e havia conquistado o primeiro lugar no prestigioso Concurso Internacional de Genebra em 1953. “Lembre-se de que Jacques preparou-se em 9 meses para o concurso de Genebra, que foi o que lhe abriu as portas para a glória. E, aqui entre nós dois, ele não levou o preparo que você tem”, confessa ela. 

Num trecho especialmente comovente, ela revela toda a expectativa que depositava naquele aluno: “Nelson, querido, todos nós temos uma fé inabalável no seu sucesso. Eu, principalmente, que estive a seu lado desde aquele tempo em que você era um menininho feio e desajeitado e guiei seus pezinhos no maravilhoso caminho da música, sei do que você é capaz. Sempre vi em você uma das maiores glórias do Brasil e para isso envidei todos os esforços. Agora que você se transformou no rapaz elegante e bonitão que está junto do relógio em cima do meu piano, é só manter a cabeça no lugar, Nelsinho, e ‘querer’ atingir o objetivo final, cumprindo a missão luminosa para a qual Deus o mandou ao mundo”. 

Lucia segue dizendo que Nelson o mantivesse informada de tudo: dos horários de estudo ao repertório trabalhado; de sua situação com Seidlhofer. Ele podia contar tudo a ela, como se estivesse “falando a um padre no confessionário”: “ficará entre nós dois e talvez, mesmo de longe, eu ainda possa ajudar o meu filhote em alguma atribulação, dúvida ou desconfiança”. Apesar de todo o afeto, não deixa de ser angustiante acompanhar o peso das expectativas colocadas em cima de Nelson que, afinal, era um menino de 15 anos.

A carta é longa e, na segunda parte, o assunto muda. Mais uma vez, Lucia responde a questionamentos de seu pupilo, que agora quer uma orientação sobre como tocar no piano peças escritas para o cravo. Por texto, a mestra consegue dar uma aula impressionante, que aborda aspectos técnicos e históricos. 

Por fim, uma terceira carta, breve e datada de 10 de maio de 1961, é endereçada a uma amiga de Nelson. Novamente procurando ajudar o amado aluno a não perder o foco, recorre a “Martita” (Martha Argerich) para que ela possa influenciá-lo nesse sentido. “Conheço-a tanto de nome, estou tão a par de sua biografia artística que é como se a tivesse acompanhado pessoalmente. E é exatamente por saber que se trata de uma grande artista por quem Nelsinho tem grande admiração que venho, na qualidade de professora dele, pedir-lhe que nos auxilie no presente momento”, começa Lucia, que segue falando da importância que Nelson faça um concurso internacional.

 

Prestes a completar 20 anos de idade, Martha havia ganho, em 1957, o mesmo concurso de Genebra. “É necessário que alguém o incentive, que o faça estudar devidamente nesse objetivo, enfim alguém que lhe transmita entusiasmo e desejo de vencer. Você quererá ser esse alguém?”, pergunta uma aflita Lucia Branco à uma jovem Martha Argerich.

Ouvir essas cartas nos vídeos preparados pelo IPB é como mergulhar no tempo, espiar pela fechadura. Enquanto a reprodução do documento original corre na tela, as cartas são lidas de forma inteligente e sensível por Sandra Branco, neta de Lucia Branco. Com uma dedicação aos alunos e à música emocionante, profunda e que não media esforços, Lucia Branco deixa-nos entrever nestas cartas porque foi uma figura tão importante para o piano brasileiro. Estes documentos mostram também seu preparo e sensibilidade aguçada: tudo o que ela já enxergava no “menininho feio e desajeitado” que acabara de se tornar um “rapaz elegante e bonitão” o mundo todo em breve iria conhecer.

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Nelson Freire, Luiz Eça, Lúcia Branco, Jacques Klein, Nise Obino e Arthur Moreira Lima, na casa de Lúcia Branco [Acervo IPB]
Nelson Freire, Luiz Eça, Lúcia Branco, Jacques Klein, Nise Obino e Arthur Moreira Lima, na casa de Lúcia Branco [Acervo IPB]

 

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