Academia Orquestra Ouro Preto apresenta sátira musical de António José da Silva, brasileiro morto na fogueira pela inquisição portuguesa
O maestro Rodrigo Toffolo é o diretor artístico e regente titular da Orquestra Ouro Preto, um conjunto criado no ano 2000. Com uma proposta artística ampla, que tem de atender também os interesses de seus patrocinadores, a Orquestra Ouro Preto desenvolve os mais diferentes projetos, de espetáculos dirigidos ao público infantil a versões sinfônicas da MPB, sem nenhum apoio ou financiamento estatal direto. Mas sem perder de vista a excelência, como gosta de enfatizar Toffolo. “O que nos distingue é o nosso trabalho, que é único, é a nossa marca. Nossos arranjos, só nós executamos. Se alguém quiser ouvir as Valencianas [trabalho sinfônico desenvolvido com Alceu Valença], tem que ouvir com a Orquestra Ouro Preto”, afirma.
A mais nova investida da Orquestra Ouro Preto é a sua Academia. Formada no início do ano, o projeto atraiu o interesse de mais de 140 jovens músicos em nível de profissionalização. Desses, 22 instrumentistas de cordas foram escolhidos para compor a primeira turma, com uma bolsa mensal de R$ 700,00. “É nesse gap que queremos trabalhar, oferecendo a possibilidade da experiência musical em uma orquestra para jovens músicos, preparando-os para o futuro profissional”, afirma Toffolo. “Queremos mostrar para esses jovens a música como um modo de vida possível, e dar oportunidades de inserção no mercado, através de um trabalho prático e, sobretudo, humano.”
Viajei a Ouro Preto no dia 15 de agosto para assistir ao novo espetáculo dos jovens da Academia Orquestra Ouro Preto, sob direção de Rodrigo Toffolo, um projeto marcado por ineditismo e originalidade: o entremez “O grande governador da Ilha dos Lagartos”, de António José da Silva.
António José da Silva é tido como um dos maiores escritores e dramaturgos da língua portuguesa do início do século 18. Nascido no Brasil em 1705, em uma família abastada e de descendência judaica, teve de emigrar a Portugal ainda criança, em razão da perseguição religiosa que a família sofria. Ali estudou na Universidade de Coimbra e iniciou uma trajetória de escritor, em sátiras e textos críticos contra a sociedade cristã portuguesa. Acusado de “práticas judaizantes”, foi preso, torturado e finalmente morto. A inquisição não acreditou na conversão ao catolicismo do incômodo cristão novo e, em 1739, portanto há exatos 280 anos, pôs fim à vida do “judeu”, como era chamado, na fogueira! Ele tinha 34 anos.
Não se sabe se António José da Silva era músico, pois não há partituras de sua autoria. Mas sua obra literária contém indicações musicais como “ária”, “coro” ou “tocar desafinado”. Assim, apesar de não haver propriamente partituras de suas peças, pesquisadores acreditam que elas tenham sido apresentadas musicadas. Como se sabe que compositores como António Teixeira e Carlos Seixas eram seus colaboradores, os musicólogos pesquisam e buscam na criação desses autores obras que, por se encaixarem na métrica e prosódia dos textos de José da Silva, poderiam ter sido as utilizadas nas apresentações.
Foi o resultado de um desses trabalhos, com edição e adaptação de David Cranmer e transcrição musical e acabamento de Gabriel Cipriano, a que assistimos em Ouro Preto. O entremez de António José da Silva “O grande governador da Ilha dos Lagartos” é um texto cômico, uma irreverente zombaria de autoridades portuguesas, com música de António Teixeira e Carlos Seixas. A direção cênica foi de Juliano Mendes e a interpretação contou com a participação dos solistas Carla Rizzi, Alberto Pacheco, Fabrizio Claussen e Carlos Eduardo Vieira, e dos atores Adriana Maciel, Alex Carvalho, Dalila Xavier, Domingos Gonzaga e Eduardo Miele. No cravo, Fernando Cordella acompanhou a apresentação e interpretou sonatas instrumentais – uma abertura e um intermezzo – como provavelmente também era uso na época. Mais uma peça musicada do que propriamente uma ópera, o espetáculo é estruturado em cenas teatrais cantadas entremeadas de música, com pouco mais de uma hora de duração.
E foi muito feliz a realização levada a cabo com entusiasmo pela jovem orquestra. No palco, uma encenação apropriada – simples e direta –, enriquecida por figurinos cedidos pelo Palácio das Artes de Belo Horizonte, deu vida a um texto que contém passagens que, pelos absurdos que retratam, poderiam se aplicar perfeitamente aos dias de hoje. E, entre as cenas, o coro dos atores exalta: “Viva o governador! Viva o governador!”
Como se não bastasse a originalidade da empreitada, a cereja no bolo foi a encenação ter acontecido na histórica Casa da Ópera de Ouro Preto. Esqueça enfeites de ouro, anjinhos ou ornamentos barrocos. O teatro é pequeno (220 lugares), simples e despojado, com piso, paredes e teto de madeira. Foi fundado em 1770 e é o teatro mais antigo em funcionamento no Brasil – em 2020 festejará 250 anos.
A Orquestra Ouro Preto e seus desdobramentos são um exemplo de sucesso de uma iniciativa cultural independente, que, de forma inteligente, alia música clássica a outras manifestações artísticas e assim abre oportunidades de trabalho impulsionando o desenvolvimento e a promoção da cultura.
Veja abaixo outras fotos da apresentação:
[Nelson Rubens Kunze viajou a Ouro Preto a convite da produção do evento.]
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