Morre aos 77 anos o pianista brasileiro Nelson Freire

por João Luiz Sampaio 01/11/2021

O mundo musical amanheceu nesta segunda-feira, dia 1º, com uma notícia trágica. Morreu, aos 77 anos, no Rio de Janeiro, o pianista brasileiro Nelson Freire. Um dos maiores nomes do piano da atualidade, ele deixa a lembrança de concertos e recitais memoráveis, além de uma discografia ímpar, celebrada pela crítica internacional.

Freire estava longe dos palcos desde outubro de 2019, quando sofreu uma queda durante uma caminhada no Rio de Janeiro. Ele fraturou o úmero, osso que liga o ombro ao cotovelo e passou por uma cirurgia. Seu retorno aos palcos estava marcado para o ano passado, mas os recitais acabaram suspensos pela pandemia. Há dois meses, ele cancelou sua participação como jurado do Concurso Chopin de Varsóvia.

Nos últimos quinze anos, a trajetória de Freire inclui a gravação de uma série de discos para a Decca. Conhecido pela sua resistência em gravar, ele assinou contrato de exclusividade com o selo e, com o maestro Riccardo Chailly e a Gewandhaus de Leipzig, gravou os dois concertos de Brahms. Também registrou discos solo com obras de Liszt, Beethoven e o repertório brasileiro, testemunhos de sua maturidade como músico.

Irineu Franco Perpetuo: Nelson Freire: sensibilidade suprema, sonoridade inigualável, paleta de cores inesgotável

Nascido em Boa Esperança, em Minas Gerais, Nelson Freire começou a tocar piano aos 3 anos de idade e, com cinco, passou a ter aulas com a professora Nise Obino. Mudou-se então para o Rio de Janeiro, estudando com Lucia Branco; e, em seguida, começou a frequentar a classe de Bruno Seidlhofer em Viena.

Foi lá que conheceu a pianista Martha Argerich, dando início a uma relação especial de amizade. Os dois também dividiriam o palco inúmeras vezes, inclusive no Brasil. E gravaram obras de compositores como Rachmaninov, Ravel e Bartók.

No filme Nelson Freire, de João Moreira Salles, lançado em 2003, os dois são vistos em uma longa conversa informal na casa da pianista, lembrando o passado e tocando piano – em uma entrevista anos mais tarde, ele contaria ao jornal O Estado de S. Paulo que a amiga era uma das poucas pessoas com quem se sentia totalmente à vontade.

O filme também mostrava algumas características marcantes do músico. Sua introversão e timidez, a dificuldade que ele sempre reconhecia de falar sobre música, a paixão pelo cinema, pelo jazz e pela pianista Guiomar Novaes, que conheceu na juventude. O documentário trazia ainda uma cena que se tornou inesquecível: seu desentendimento com o piano da Sala São Paulo. “Ele não gosta de mim”, disse.

Nos anos 1970 e 1980, Freire gravou para o selo Columbia uma série de discos com obras de Schumann, Chopin e Brahms. Os álbuns foram relançados em 2004, quando a Decca também lançou uma série de gravações ao vivo, feitas por rádios europeias, de peças como os concertos nº 1 de Tchaikovsky, Prokofiev e Chopin; o terceiro de Rachmaninov; o segundo de Liszt; e o concerto de Schumann.

O pianista ficou então quase duas décadas sem gravar. Até que, no início dos anos 2000, ele assinou um contrato com o selo Decca. O primeiro disco foi dedicado a Chopin e, em seguida, viriam álbuns com peças de Beethoven, Schumann, Liszt, Debussy, Bach. E os dois concertos de Brahms, o quinto de Beethoven e o segundo de Chopin. 

“Estes são os concertos para piano de Brahms que estávamos esperando. Nelson Freire e Riccardo Chailly oferecem interpretações que fundem de modo triunfal imediatismo e profundidade, poder e lirismo e virtuosismo incandescente, deixando poucos detalhes sem atenção, mas sempre com o arco mais amplo das peças em vista”, escreveu o crítico da Gramophone sobre os concertos de Brahms gravados em Leipzig.

Abordando seus discos dedicados a Beethoven, Schumann e Debussy, o jornal The Guardian também ressaltou as qualidades marcantes de Freire. “Poucos pianistas vivos transmitem a pura alegria e euforia de serem mestres em seu ofício de maneira mais vívida e descomplicada do que Nelson Freire. Talvez apenas sua velha amiga e parceira de duo Martha Argerich seja igual a ele, um músico para quem a técnica deslumbrante é apenas um meio para um fim musical, nunca algo a ser alardeado por si só.”

A música brasileira também fazia parte de seu repertório. Gravou Villa-Lobos e interpretou peças como o Momoprecoce com diversas orquestras do país, levando-a inclusive para a turnê da Osesp pela Inglaterra, em 2011. Brasileiro, gravado pouco depois para Decca, trazia série de miniaturas de diferentes autores brasileiros.

Em 2010, no prefácio ao livro Guiomar Novaes do Brasil, Freire escreveu que a pianista possuía o raro dom de jamais se repetir. “Tudo o que fazia era tão convincente e natural que parecia impossível ser de outra forma. Guiomar Novaes não se contentava com o imediato. Transmitiu a várias gerações o sentido dinâmico da imortalidade.”

No momento triste da morte do pianista, fica o consolo de que suas palavras se aplicam também a ele. Com a experiência de cada concerto para sempre em nossa memória. 

 

[Adendo às 16:00: O velório de Nelson Freire será amanhã, dia 2 de novembro, de 11h às 16h, no foyer do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.]

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O pianista Nelson Freire [Divulgação/Decca/Gregory Favre]
O pianista Nelson Freire [Divulgação/Decca/Gregory Favre]

 

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Para confirmar os comentários feitos pelo João Luiz e pelo Irineu, eu convido a todos a assistirem, se não for de forma completa, pelo menos um trecho do filme realizado por Moreira Salles. Trata-se da apresentação por Nelson Freire da pequena melodia de Gluck-Sgambati (Orfeo e Eurídice), registrada no Brasil e na Rússia. Observem, não somente a interpretação do pianista, mas também a reação do público durante o recital. É Nelson Freire irradiando sua perfeita técnica e sua sensibilidade. De fato, Nelson Freire é uma referência internacional na história do piano. Leonardo Godefroid, de Ouro Preto, MG.

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