Por Wagner Corrêa de Araújo [jornalista especializado em cultura, crítico de artes cênicas (dança, ópera e teatro) no blog autoral Escrituras Cênicas e jurado de prêmios teatrais]
A dança, desde tempos ancestrais, sempre esteve conectada às celebrações. Ela se manifesta por meio da palavra transmutada em expressão da corporeidade, dos fatos épicos e heróis lendários de cada uma das civilizações. Servia de portadora gestual da mensagem religiosa nas cerimônias rituais dos templos, incorporando-se também como elemento integrante nas representações ao ar livre das tragédias gregas clássicas.
A dança estendeu-se às cortes europeias a partir da Renascença. Ali, serviu como fator de incentivo aos folguedos e festas palacianas, foi se tornando parte essencial na narrativa dos espetáculos teatrais. É válido lembrar que o dramaturgo Molière (1622-1673) ficou conhecido como um mestre da chamada comédia-balé onde os atores atuavam também como bailarinos.
O grande impulso ao enredo, inspirado em fábulas, romances e poemas, surgiu especialmente com os balés românticos já na terceira década do século XIX. Giselle, de 1841, pode ser considerado praticamente como o primeiro balé em que o libreto em dois atos foi todo idealizado por um reconhecido escritor francês – Théophile Gautier (1811-1872).
Outro balé que teve como fonte exclusiva a literatura foi Dom Quixote, de 1869, baseado no celebrado livro de Miguel de Cervantes (1547-1616), com música de Léon Minkus (1826-1917) e coreografia de Marius Petipa (1818-1910). A obra integra o repertório dos maiores êxitos históricos da história da dança, até os dias de hoje, na interpretação e releitura coreográfica de nomes míticos como Rudolf Nureyev (1938-1993), entre outros. Além deste, o romance de Prosper Mérimée (1803-1870), Carmen, tornou-se uma das obras literárias mais adaptadas, seja para a ópera, para o cinema ou para a própria dança.
Mas a dança assume maior interrelação com a literatura por meio dos Ballets Russes, de Serge Diaghilev (1872-1929). No final do século XIX e nas primeiras décadas do seguinte, Diaghilev expandiu a dança para novos horizontes, resultando em obras emblemáticas. É o caso do Prélude à l’après-midi d’un Faune, 1912, na interpretação e coreografia de Vaslav Nijinsky (1889-1950), sob a música de Claude Debussy (1862-1918), tendo como base um poema simbolista de Stéphane Mallarmé (1842-1898).
A tendência é sequenciada, após a era Diaghilev, por intermédio das adaptações de obras dos mais diversos escritores. No qual ampliou o universo coreográfico/literário já plenamente imerso no modernismo, e fazendo prevalecer, entre outros experimentos, do estilo expressionista ao abstracionismo. Autores de Jean Cocteau (1889-1963) a Samuel Beckett (1906-1989) foram adaptados pela visão personalista de coreógrafos inovadores, de Léonid Massine (1896-1979) a Balanchine (1904-1983), passando por Mary Wigman (1886-1973), Rudolf Laban (1879-1958) e Martha Graham (1894-1991).
No Brasil de hoje, isto pode ser exemplificado por meio de uma original criação: ST – Tragédias, de 2023. A obra, dimensionada em subliminar sotaque neoclássico conectado à dança contemporânea, é uma dúplice e recente idealização dos bailarinos Ana Botafogo e Marcelo Misailidis, no entorno de duas tragédias de W. Shakespeare (1564-1616).
Para o ex-primeiro bailarino do BTM/RJ e coreógrafo Marcelo Misailidis, também conhecido por estender seu ofício à comissão de frente de Escolas Cariocas de Samba: “A montagem do espetáculo ST – Tragédias foi pra mim o primeiro passo na busca de uma identidade como coreógrafo, que traduza em dança as experiências de uma carreira ligada ao balé clássico, a um aprendizado transmitido por meio da oralidade e de tudo que representa tradição. Mas ao mesmo tempo com forte influência de diretores de teatro com quem trabalhei, e a contemporaneidade da arte popular como o Carnaval, que por vezes consegue atingir impressionante qualidade de representação e tradução de temas e enredos variados”.
E sua tão bem-sucedida versão destas duas tragédias shakespearianas conectadas em espetáculo único abre perspectivas para outro, desta vez a partir do teatro clássico grego: “ST, mais do que a junção de dois grandes mestres da arte como Shakespeare e Tchaikovsky (1840-1893), representa para mim uma chave para oferecer novas possibilidades ao ballet d’action assim denominado por Noverre, gênero de espetáculo que desenvolveu no século XVIII, e que acredito tenha ainda muito a oferecer para dança, oferecendo como aqui novas releituras de obras como Romeu e Julieta e Otelo. Este processo de contar uma história, unindo integralmente a concepção coreográfica, cenográfica e trilha sonora, resulta ao menos num espetáculo de clara unidade estética, o que me motiva a seguir em frente, e mergulhar com entusiasmo na minha próxima produção para 2026, com uma obra tão desafiadora quanto perturbadora – em breve será a vez de Medeia”, finaliza Marcelo.
Muitos criadores no universo da dança continuaram seu processo de busca inventiva inseridos pela pesquisa de textualidades da literatura transmutadas em escrituras coreográficas. Enquanto isso, outros iniciavam um movimento da dança pela dança, sem qualquer contextualização com o discurso literário na priorização de um corpo-linguagem independente, abstrato e imagético no seu intencionalismo de pura expressão do movimento direcionado pela fisicalidade gestual.
Por outro lado, inéditas perspectivas vêm se abrindo na conceitualização de um espetáculo coreográfico referenciado pela linguagem literária. Com as inúmeras possibilidades que os avanços digitais permitem, além de um enredo que repercute a palavra literária verbalizada no espaço cênico (legado inovador de Pina Bausch (1940-2009) com sua dança-teatro), tais possibilidades incluem projeções virtuais ou no registro sonoro de fragmentos do texto ficcional ou do poema inspirador da obra.
Isso, também, acontece na contextualização conceitual de temas particularmente necessários, no entremeio de ascendentes manifestações sociais e políticas e representações identitárias de raças e opções sexuais. Um exemplo é a recente adaptação americana para os palcos coreográficos do livro de James Baldwin (1924-1987) (O quarto de Giovanni). Nela o coreógrafo jamaicano Iyun Ashani Harrison, ex-integrante do Dance Theatre of Harlem, opta pelo tema como afirmação de sua negritude e homossexualidade em similaridade com o escritor e seu personagem.
Em sua trajetória potencial, a Renato Vieira Cia de Dança mostra em seu repertório diversas obras inspiradas pela literatura. A última delas, em 2025, Gaveston & Eduardo, inspirada na obra do escritor e dramaturgo inglês Christopher Marlowe, contemporâneo de Shakespeare. A obra tem como referencial a provocadora ligação amorosa entre o rei Eduardo II e seu cortesão Gaveston, que escandalizou a corte inglesa medieval. Renato Vieira fala sobre seu processo de criação tendo como referencial suas diversas adaptações dos livros para os palcos: “Concebo meus espetáculos como experiências sensoriais e intelectuais. Cada obra literária se transforma em um ponto de partida, em um disparador de imagens e emoções. A partir dela, vou construindo coreografias que não ilustram, mas transmutam o texto”.
“A dança nasce do entrelaçamento entre palavra e corpo, razão e instinto, conceito e emoção. Nos processos criativos, a literatura provoca, instiga e desafia. Obras como A voz da imagem, inspirada na poesia visionária de William Blake (1757-1827); Terceira margem, baseada no conto de Guimarães Rosa (1908-1967); ou Blue, que dialoga com a poesia da polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012), mostram como a palavra escrita pode se tornar movimento e pulsação. Trânsito entre o erudito e o contemporâneo, entre o político e o poético. Em O alienista e Gaveston & Eduardo, o gesto também denuncia, critica e faz pensar. Em Malditos, os ecos do Movimento dos Poetas Malditos se misturam ao rock e ao desconforto de um tempo que insiste em repetir os retrocessos dos anos de chumbo. Quando mergulho em um texto, não quero apenas entendê-lo. Quero vivê-lo com o corpo. A dança é a forma verdadeira que encontrei para dizer o que está por trás das palavras que, sozinhas, não conseguem”, nos conta o coreógrafo.
Há ainda um conceito advindo de pesquisas atuais sobre este encontro de duas linguagens artísticas. Esse coloca também o legado das análises críticas como uma espécie de decifração, por meio da palavra escrita, de toda simbologia que está por trás de cada texto literário transmutado num espetáculo coreográfico.
Isso incentivou a Bibliothèque Nationale de France, por meio de uma decisão pioneira em termos mundiais, a criar um acervo coreográfico virtual. O acervo tem como base todas as análises críticas postadas na revista digital francesa danse.org. E vai mais além, ao preservar para as futuras gerações o registro documental do movimento e da linguagem sob a perspectiva de uma completa reconstrução teórica do emblemático significado estético e social alcançado nas interrelações entre a palavra literária e a obra coreográfica.
O coreógrafo Georges Balanchine, russo radicado nos Estados Unidos até sua morte, foi originário da geração que veio após o surto dos balés russos pelo do mundo. Ele tornou-se um mestre na estética da dança neoclássica, sempre propugnando por uma dança rigorosamente pura sem recorrências à narrativa literária. Balanchine afirmou sempre sua autonomia em suas criações privilegiando, ali, apenas as composições musicais que a inspiram.
Entre posições favoráveis ou não a uma relação privilegiada que pode existir usando a palavra literária, como ponto de partida para uma obra coreográfica, lembramos que: no entremeio do encontro de linguagens artísticas diferentes o fundamental é nunca deixar que uma se sobreponha à outra. Afinal, tanto a literatura quanto a dança têm sua própria forma de expressão. Enquanto uma dá o recado através da palavra escrita, a outra torna visível sua mensagem estética pela corporeidade gestual dos bailarinos.
E é, afinal, pela escritora Clarice Lispector (1920-1977), que uma bela reflexão literária se torna, num mágico processo de síntese estética, coreografia verbal “pelo corpo linguagem que corre solto sob sonoridades, corpo que é palavra, que se faz de palavra e se desloca com elas”...
Para assistir no YouTube
Giselle - II Ato, de Lars van Cauwenbergh | São Paulo Companhia de Dança (clique aqui)
Don Quixote, Royal Ballet (clique aqui)
ST – Tragédias, de Ana Botafogo e Marcelo Misailidis (clique aqui)
Gaveston & Eduardo, Renato Vieira Cia de Dança (clique aqui)
Sobre o autor: Wagner Corrêa de Araújo é jornalista especializado em cultura, roteirista, diretor de programas de TV e crítico de artes cênicas. Foi jurado dos Prêmios de Teatro 2018 – Botequim Cultural, APTR (Associação dos Produtores Teatrais) e Brasil Musical. Dirigiu os programas Manchete Verdade, Caderno 2, Cadernos de Cinema e Curta Brasil (TVE/TV Brasil), além dos documentários Balé Teatro Guaíra 30 Anos e O Grande Circo Místico. Atuou como crítico convidado nos Festivais Internacionais de Berlim, Belgrado FestFilm, Brasília e Gramado. É criador do Centro de Cinema Humberto Mauro, do Palácio das Artes (BH), e participou como jurado no DOC/TV e em festivais de cinema hispano-brasileiros. Foi curador de mostras de vídeo e cinema nos Festivais de Dança de Joinville e no Santuário Ecológico de Dança do Pantanal/MS. Trabalha na produção de eventos culturais da Casa da Leitura/BN/MINC e é autor do blog www.escriturascenicas.com.br.
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