Alma interiorana

por Redação CONCERTO 08/11/2021

Por Pedro Moraes*

Na casa de minha avó, as paredes repletas de fotos em preto e branco ocupavam um quarto. Desde que eu era muito pequeno, ela insistia em me levar diante delas e apresentar as pessoas: “Estes são meus pais: vovó Dute e vovô Dedé, repete”. Eu repetia. Adorava o ritual. A maioria das pessoas já havia morrido, é claro. Até seus 90 anos, ela repetiu isso, cheia de orgulho. Em especial sobre a foto de um homem barbudo que se parecia com ela.

Seu orgulho maior, no entanto, consistia no irmão. Aquele que era o menino-prodígio. Ela, a mais velha da família, contava em tom de causo do interior o episódio do menino de calças curtas, que, aos 3 anos, já a acompanhava ao piano. Inesperadamente, ele subiu ao piano e, num trecho que ela nunca conseguia acertar, foi certeiro.

Da cozinha, Vovó Dute falou sobre a maravilha da filha ter conseguido finalmente tocar a passagem, mas não era bem assim. Ali nasceu o pianista Nelson Freire. Essa história foi contada à exaustão, mas nunca causou cansaço de ser ouvida, menos ainda de ser contada.

Os dois, Nelma e Nelson, viveram uma espécie de paixão fraternal. Era uma troca de olhares mútuos, um encantamento mágico. Coisa impossível de descrever. Precisou ser visto para entender. Visto na intimidade daquele homem de gestos leves, fala tranquila, andar macio e sorriso fácil. Entre os Freires, havia sempre uma mágica.

Nas reuniões, se divertiam contando piadas não bem aceitas em salão, contavam “causos” e mais “causos” de pessoas que jamais esquecem. Viviam uma amizade rara. Num tempo próprio deles. Observar sua mineirice, o eterno jeito interiorano, de Boa Esperança, da mesa posta e receptiva aos parentes foi uma constante.

Sempre existiu um respeito absoluto, com a compreensão de que o irmão estudava muito, até 12 horas por dia; de que estava ausente, trabalhando. Mas, no meio de uma viagem qualquer, ele pegava uma foto, fazia uma cópia e enviava para sua irmã. Na imagem, ela cercada de flores, ele escreveu: “a mais bela de todas”.

No fundo, o requinte dos palcos mais famosos, onde quer que fosse, era um ofício. No Municipal do Rio, os irmãos tinham um camarote, sempre ocupado por eles. Com a sensação de que estavam em casa.

A lembrança do grande pianista como homem é de uma pessoa tranquila, sempre cercada de cachorros, com prazer na comida de casa. Do pão de queijo, da leitoa e das prosas intermináveis sobre gente como ele.

Impossível listar quantas plateias o aplaudiram, enveredar por sua memória de músico celebrado mundialmente. Para ele, a música era sua vida, o que resumia todas suas expressões e lidava com todas suas emoções.

Ao fim, o gênio, estudioso, poliglota, ovacionado encerrou sua jornada na sua terra. Boa Esperança, em Minas, onde sempre fugiu para ser somente o Nelsinho. Amado pelos primos, o caçulinha de sempre. O glamour das escadarias de carrara foi trocado por um túmulo negro, onde aguardavam Dute e Dedé. No enterro, o caixão estava cercado de vira-latas. Uma despedida interiorana, típica de quem jamais perdeu suas raízes. 

[Reprodução]
Nelma e Nelson Freire em retrato de família [Acervo Pessoal]

* Pedro Moraes, jornalista, sobrinho-neto de Nelson Freire, neto de Nelma da Glória Freire Brito, a irmã que ensinou a primeira nota musical ao pianista

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