Ópera de Weill ganha montagem que explora o grotesco 

por Nelson Rubens Kunze 09/11/2021

Transformado em “prólogo”, concerto para violino acabou prejudicado

O Theatro São Pedro em São Paulo estreou neste fim de semana a ópera Os sete pecados capitais, de Kurt Weill e Bertolt Brecht, com a orquestra da casa sob regência de Ira Levin. Antes, o programa trouxe o Concerto para violino op. 12, também de Weill, na interpretação do violinista Cláudio Cruz.

Kurt Weill, nascido em 1900, é famoso por suas colaborações com Bertolt Brecht, um dos mais importantes dramaturgos alemães da primeira metade do século 20. A música instrumental de Weill, contudo, é pouco conhecida. O Concerto para violino op. 12 é uma obra muito interessante, escrita para orquestra de sopros, com ecos do expressionismo da segunda escola de Viena. Na divulgação, achei curioso o fato de o concerto vir identificado como “prólogo” à ópera, uma vez que o concerto (escrito em 1924) não tem nenhuma conexão com a ópera (escrita em 1933). Nem na temática e muito menos na linguagem musical. 

Mas assim foi, e o concerto acabou ficando prejudicado pelas ações cênicas, que no início mais pareciam uma arrumação do palco e ajuste de luzes. Enquanto o solista Cláudio Cruz e a orquestra tocavam, um vídeo de uma mulher dentro de um carro, janela aberta, cabelos esvoaçantes, era projetado sobre uma grande tela. Seguiu-se a cena de abertura do filme A mulher de todos, realizado em 1969 pelo cineasta Rogério Sganzerla. 

Sete pecados capitais, A mulher de todos, Alemanha anos 30, posto de gasolina, Brasil 1969, Brecht, Sganzerla, comédia de pornochanchada, cabaré da República de Weimar – quem procurou algum sentido na ação cinematográfica, não prestou mais atenção à música, que ficou perdida no meio do caminho. Quando o concerto e as projeções terminaram, o público não sabia se devia aplaudir ou se tudo aquilo já era parte da ópera. Mas, como o maestro Ira Levin e o solista Cláudio Cruz seguiam os ritos tradicionais – com cumprimentos e agradecimentos –, finalmente aplaudimos. Na sequência, o palco começou a ser rearrumado enquanto um ator declamava um texto. Alguns minutos depois, quando o maestro Ira Levin retornou ao palco, a ópera começou (ou continuou...).

O diretor cênico Alexandre Dal Farra afirma no programa que Os sete pecados capitais é uma obra sobre a repressão dos desejos, e sobre como a moral pseudo-religiosa é, no fundo amoral, e serve apenas para justificar (falsamente) as constrições que o capital exige. “As duas irmãs, na ópera de Kurt Weill e de Brecht, aprendem a se reprimir, mas não para serem melhores pessoas, e sim, para poderem se vender melhor.”

Dal Farra concebeu uma montagem que faz constantes alusões ao filme de Sganzerla, uma comédia chanchada. Em sua encenação, Anna 2 é um objeto que se submete a tudo. Dal Farra explora um viés grotesco e vulgar por meio de uma mensagem direta, explícita, por vezes escatológica. A interpretação corporal de Anna 2, seus arroubos e movimentos estrebuchados, de vez em quando parecem surtos, como numa catarse. 

A direção cênica incorporou os técnicos de palco fazendo as mudanças de cena, de modo que tudo está à vista. E, creio deliberadamente, fazendo ruído: os móveis são arrastados, tapetes são jogados. Um cinegrafista de câmara na mão se movimenta pelo palco, filmando os acontecimentos, que são projetados sobre uma tela. Em uma das cenas, Anna sai do teatro e podemos vê-la contracenando na rua Albuquerque Lins.

Os sete pecados capitais é mesmo uma sátira irônica com aguda crítica social, que pode naturalmente ter essa abordagem direta e grotesca. A concepção de Dal Farra, contudo, achata a complexa questão da moralidade humana e de seu contexto político e social, tão criativamente abordada no texto de Brecht. A leitura radical e sem arestas suprime a dimensão multifacetada que a ópera propõe, que se evidencia também na divisão de uma mesma Anna em dois caracteres.

Assisti à apresentação de sábado, dia 6 de novembro. Dirigido pelo maestro Ira Levin, o concerto foi bem, com excelente interpretação de Cláudio Cruz. Na ópera, houve alguns problemas – como desequilíbrios entre naipes e dinâmicas eventualmente exageradas – talvez também em decorrência da orquestra ter sido posicionada sobre o fosso elevado e na parte dianteira da plateia (uma imposição, claro, dos tempos pandêmicos). Em alguns trechos, senti falta de sutilezas e inflexões próprias do estilo do cabaré da época. 

Foi boa a atuação do elenco vocal, com destaque para a mezzo soprano Denise de Freitas, que fez o papel de Anna 1. No quarteto vocal masculino sobressaíram o baixo Anderson Barbosa como mãe e o tenor Paulo Mandarino, que fez o pai. Com grande entrega, também os atores enfrentaram com coragem e competência os seus papeis. 

Com todas as eventuais discordâncias, é uma alegria ver a temporada voltando. E, como queria Brecht e Weill, que o teatro, a ópera e as artes sigam questionadoras, propondo novas ideias e transformações.

Cena de ‘Os sete pecados capitais’, produção do Theatro São Pedro (divulgação, Heloísa Bortz)
Cena de ‘Os sete pecados capitais’, produção do Theatro São Pedro (divulgação, Heloísa Bortz)

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Comentários

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Querido Nelson, terei que discordar de sua crítica – e que bom termos espaço para isso. Primeiramente porque acho louvável o Theatro São Pedro acolher tanto o título quanto a presença de um encenador que se lança no mundo da ópera com tamanho arcabouço de criação teatral e conhecimento musical, como é o caso do Dal Farra. Só este fato já me agrada profundamente. Quando a isto se combina a homenagem-referência a Helena Ignez, Sganzela e seu clássico filme como mais uma camada a dialogar com toda a já estrangeira trama brechtiana, sinto felicidade ainda maior. Como frequentadora de teatro achei que poderia me irritar a presença de elementos um tanto clichês do teatro contemporâneo (microfone, câmera seguindo atriz pela rua) mas neste caso tais clichês resultaram, ao meu ver, como uma piscadela ao público paulistano, como que dizendo: estou aqui propondo uma ponte entre a cena teatral e a operística. Gosto. Gosto tbm da ideia de colagem, de se usar um concerto para violino como prólogo, acho que este tipo de ousadia nos coloca numa linhagem bem atual do fazer operístico pelo mundo, em que experimentos (quando feitos com substancia) com a forma são mais bem vindos que a pura reprodução filologicamente correta. Saí exultante do teatro por ver um trabalho tão vibrante que abriu um espaço de atuação deliciosa aos cantores e cantora (divina). Quero mais!

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Oi Ligiana! Obrigado por ter escrito. Nossa, mais claro que é legal o teatro acolher o título e gente do teatro, será que me expressei mal?? E isso que você chama de “clichês do teatro contemporâneo” também não me incomodou. Como escrevi, achei a opção do prólogo equivocada. E tenho um outro entendimento em relação à montagem... mas sem demérito ao Dall Farra!!

Desculpe, mas eu vou reiterar a opinião da Ligiana, e tentando me aprofundar em algumas das questões que vc coloca: eu não acho que houve nenhum prejuízo da peça para violino; até posso concordar que em princípio o espectador que não está familiarizado com essa peça fique um pouco confuso: são segundos até ele reajustar o foco, qual a diferença de tantas aberturas de ópera que já introduzem a ação no palco? Acho que outro problema aqui é chamar o tempo todo de ópera, e isso se compreende pela tentativa de justificar uma peça tão original ser levada num teatro como o São Pedro. Não é uma ópera, é um "ballet satírico cantado", acho importante a gente se ater à nomenclatura dada pelo Weill e pelo Brecht porque ela inverte, de algum modo, uma certa hierarquia implícita quando se fala de ópera traficional. Por falar em hierarquia nós sabemos da ascendência do maestro sobre as outras funções na montagem de um espetáculo assim, e não acho que nem Ira nem Cláudio Cruz colaborariam com uma linguagem que prejudicasse o desempenho dessa música. Mas para falar de teatro, uma parte fundamental da música de Weill: eu não entendo o problema com o conceito de grotesco, como se esse fosse estranho ao teatro brechtiano. Tbm não concordo que falta de sutileza seja um problema, o tom dado pelo diretor no programa ou no prólogo não definem o tom nem da peça nem da música, todos os temas caros ao Brecht tão lá, inclusive cenicamente. É uma obra curta, bem sintética, toda a crítica do Brecht/Weill ao capital absolutamente claros, e essa clareza tá expressa na música e muito bem descrita na encenação. Aliás, a associação da Alemanha pré Guerra, do Brasil do filme de Sganzerla e do Brasil de XXI é tão óbvia que nem precisa de uma defesa eloquente.

Aplausos ao teatro que resolveu arejar o repertório e chamar encenadores de fora da ópera. Quando eu saio de casa, trocando gravações das maiores vozes do século XX para ir ao teatro eu espero me surpreender exatamente com montagens desse tipo. Aliás, uma pessoa próxima viu a montagem num dia diferente e achou a atriz que faz Anna II muito parecida com a grande Marilena Ansaldi fazendo tanztheater. Eu também achei. Não me apetecem críticas de ópera que elevam a música acima de tudo e não perdoam montagens mais ousadas.

E desculpe o segundo comentário, mas além de colaboradora frequente de Alexandra del Farra a atriz que faz Anna II é premiadíssima no teatro e a atriz brasileira com maior presença no cinema de autor e chama Gilda Nomacce, achei a omissão do nome desrespeitosa.

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Olá Marcelo! É verdade, na obra, o texto e o teatro de Brecht assumem a mesma importância da música, sem dúvida. Eu acho o título incrível e absolutamente apropriado para o Theatro São Pedro. E concordo também que não há nenhum problema em chamar encenadores “de fora da ópera”, uma prática comum há décadas. Obrigado pela mensagem, o espaço aqui é mesmo o da troca de ideias, de diferentes opiniões. Leia também a crítica que Ligiana Costa escreveu ontem neste mesmo espaço de “Textos” do Site CONCERTO. Saudações

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