Tantos Titanics naufragam cotidianamente em nossos teatros de ópera que, por vezes, o desalento domina: vale a pena empenhar tantos recursos em um espetáculo de resultado tão incerto? Contudo, quem foi ao Theatro São Pedro para acompanhar a última ópera da temporada não tem como não responder de forma afirmativa. Escolha-se o título certo para as possibilidades da casa, escale-se um time qualificado e bem ajustado, e pronto: sem um orçamento milionário é possível obter o mais prazeroso dos resultados.
O bel canto italiano não apenas está profundamente ligado às tradições operísticas de São Paulo, como oferece centenas de títulos adequados às vozes locais – e convenhamos que, embora a música seja uma atividade internacional, e intercâmbios sejam bem-vindos e benéficos, depois de quase dois anos trancafiados e sem trabalho (e renda) por conta da pandemia, nada mais justo do que nossos artistas serem privilegiados no momento da retomada. Com ritmo ágil, tema apropriadamente feliz para o final do ano e música efervescente, Il Signor Bruschino, de Rossini, foi levado ao palco com tamanha verve que tornou até possível o sempre difícil exercício do otimismo.
Datada de 1813 (portanto, três anos anterior ao blockbuster O Barbeiro de Sevilha), Il Signor Bruschino foi a quinta e última das farsas em um ato que o compositor escreveria para o Teatro San Moisè, em Veneza. Sua primeira audição foi em 27 de janeiro; pouco depois, em 6 de fevereiro, Rossini estreou uma tragédia bem mais ambiciosa, Tancredi, baseada em Voltaire, na mesma cidade – porém no icônico Teatro La Fenice. O êxito da segunda obnubilou a primeira, e o próprio compositor tinha tamanha facilidade para criar obras novas que jamais pareceu preocupado em resgatar a deliciosa criação de juventude, em que pesem seus efeitos de encantadora ingenuidade (como os arcos dos violinos a percutirem as estantes das partituras na abertura).
Il Signor Bruschino é uma daquelas comédias românticas em que um par de apaixonados deve lograr uma figura paterna e poderosa para se unir. Mantém as reviravoltas e inverossimilhanças típicas do gênero, porém de forma concisa. A brevidade é, aqui, virtude: nada se perde nem se arrasta nessa trama concisa.
Não dá para contar uma história dessas de forma naturalista, e Caetano Vilela comandou uma montagem colorida e vibrante, com bastante espaço para os cantores chamarem o público para a diversão. E os solistas se esbaldaram – como, por exemplo, o impagável personagem-título de Saulo Javan, cujas estripulias causavam ainda mais alegria quando nos lembrávamos de o quão seriamente ele chegou a ser golpeado pela pandemia; ou o Gaudenzio de Savio Sperandio, cuja voz robusta (porém manejada com refinamento) dava a impressão de ressoar longamente pelas ruas vizinhas ao Teatro São Pedro, de tão possante.
Montar um elenco não é apenas escolher vozes boas (confiando em seu estado atual, e não em um passado glorioso, porém irrecuperável), mas garantir o equilíbrio entre elas. Lina Mendes não apenas esteve bem como Sofia, porém ainda sua vocalidade casou-se harmoniosamente com a de seu par romântico, o Florville de Daniel Umbellino. Este, que já vinha se destacando em papéis secundários, provou estar mais do que preparado para encarar protagonistas, demonstrando afinidade com o estilo do bel canto. Fernanda Nagashima e Jabez Lima estavam adequadamente divertidos nas pequenas partes de Mariana e Bruschino Filho, e foi um luxo ter a solidez de Gustavo Lassen e Fellipe Oliveira, respectivamente, como Filiberto e o delegado de polícia.
No fosso, Claudio Cruz exibiu mais uma faceta de sua aparentemente inesgotável versatilidade, com uma leitura idiomática e borbulhante, atento aos cantores e, ao mesmo tempo, preciso no ritmo e nas articulações, e sem jamais deixar a vibração do espetáculo arrefecer.
Em 2022, comemoram-se não apenas os 230 anos de nascimento de Rossini, como o bicentenário da Independência do Brasil. Não custa lembrar que, em 1822, Rossini era coqueluche por aqui, e as melodias de suas óperas eram até aproveitadas nas igrejas, para embalar os cultos religiosos de então. Quem sabe a efeméride dupla não serve para que outras de suas 39 óperas cheguem a nossos palcos? Como o Theatro São Pedro acaba de provar, há muito a ser desfrutado em Rossini para além do do Barbeiro de Sevilha.
A montagem de 'Il Signor Bruschino' tem ainda récitas nos dias 11 e 12; clique aqui e veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO
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Comentários
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Gostei demais. Uma…
Gostei demais. Uma apresentação com a cara do Theatro São Pedro: simplicidade, com qualidade em todos detalhes.