Beleza a partir dos escombros

Encenação de Antonio Araújo para I Capuletti e I Montecchi jamais brigou com a música, sempre a favoreceu

Nem sempre o que vemos nas encenações paulistanas de ópera reflete a pujança e variedade da cena teatral da cidade. Porém, quando isso acontece, o resultado é estimulante – como se viu, neste mês, no Theatro São Pedro. Mais do que Regietheater, o que Antonio Araújo fez com I Capuletti e I Montecchi, de Bellini, mereceria ser chamado de “teatro total” – uma exploração para lá de imaginativa dos recursos teatrais. Aliás, poder-se-ia dizer ainda que foi uma montagem talvez não rica em orçamento, mas superabundante em recursos – humanos, estéticos e criativos.

Apenas em um meio musical tão provinciano quanto o de São Paulo ainda é possível que se discuta se é ou não “legítimo” deslocar no tempo ou no espaço a ação de um título de ópera. A discussão pertinente a cada montagem é como isso é feito, se as escolhas da encenação funcionam e se justificam. E, no caso do espetáculo do Theatro São Pedro, a resposta só pode ser o mais rotundo sim.

Breve depoimento pessoal: Araújo capturou minha imaginação em 1995, quando ocupou as ruínas do Hospital Umberto I (hoje convertido em hotel de luxo), em São Paulo, com uma encenação emocionante do Livro de Jó, na qual destacava-se a atuação de um ator mirrado e carismático, que logo o Brasil aprenderia a amar, de nome Matheus Nachtergaele. Em ópera, impactou-me muito sua encenação de Orfeu e Eurídice, de Gluck, em 2012, em meio às obras da atual Praça das Artes, do Theatro Municipal de São Paulo, com o elegante Orfeu da mezzo Kismara Pezzatti e a Orquestra Sinfônica Municipal galvanizada pelo eletrizante e saudoso Nicolau de Figueiredo.

De Tó (como o meio teatral o chama) aprendemos a esperar de tudo – desde que não fosse o previsível. E, no São Pedro, ele entregou mais. De repente, era como se a ópera de Bellini não tivesse sido urdida em uma estrutura bastante rígida de números musicais, e o tempo dramático, em vez de estático, na verdade fosse dotado de fluência e organicidade. Ao cometer aparentes “infidelidades” ao não seguir literalmente cada indicação do libreto de Felice Romani, Araújo acaba sendo mais fiel ainda ao espírito geral da ópera, cujos afetos são intensificados em sua leitura, e comunicados ao público de forma mais imediata e intensa.

Não foi o diretor, por exemplo, quem inventou que Romeu seria cantado por uma mulher. Isso já estava presente na partitura original. Ao assumir Romeu como figura de mulher, Araújo simplesmente faz dela uma personagem muito mais crível e verossímil. 

Mas o que mais me intrigava neste espetáculo era que, tendo visto Araújo dirigir espetáculos em locais em ruínas, ou em obras, queria saber como ele se portaria em um teatro “inteiro”, “pronto”. E a resposta foi: reconfigurando-o.

Todo o São Pedro foi transformado no cenário da ópera. Nós, o público, não fomos chamados a interagir, mas estivemos o tempo todo envolvidos pela ação, contemplando face a face solistas, coralistas e instrumentistas que poderiam surgir a qualquer momento ao nosso lado, diante de nós, por detrás. Em sua arquitetura, o São Pedro já é das mais “democráticas” casas de ópera, no sentido de não possuir camarote nem “poleiro”, lugares “nobres” ou “subordinados” – vê-se e ouve-se bem de qualquer posição. Na encenação de Araújo (que, em entrevistas, destacou o caráter coletivo de uma ópera que não leva o prenome do casal de apaixonados, mas sim o sobrenome de suas famílias rivais), ficamos ainda mais próximos de um drama destinado a nos tocar não apenas por suas qualidades intrínsecas, como também pela comunicabilidade imediata da encenação.

Uma encenação que jamais brigou com a música, mas sempre a favoreceu. Como quando Araújo trouxe ao palco (como já havia feito com o flautista Marcelo Barboza, no Orfeu de 2012) o clarinetista Daniel Oliveira, executando seus solos com sonoridade sedutora e fraseado dos mais refinados. Ou ainda o lirismo tocante da cena do cortejo fúnebre de Julieta, na qual o Coro Jovem do Estado mostrou que um coral de ópera não precisa berrar em todas as passagens que lhe são atribuídas, e cantou com a singeleza e doçura que a ocasião requeria.

Obviamente, não se pode cobrar de um coro jovem a robustez de um grupo profissional. Mas esses cantores merecem elogio por terem “comprado” tão prontamente a proposta de Araújo, atuando como verdadeiros atores, com uma desenvoltura por vezes ausente de seus colegas mais experimentados.

Na questão dos desempenhos vocais e da condução orquestral, ainda que tenhamos assistido a récitas diferentes (fui na quarta-feira, dia 27, enquanto ele esteve no domingo, dia 24), não tenho muito a acrescentar à excelente análise de João Luiz Sampaio. Gostaria, talvez, apenas de sublinhar o domínio de Denise de Freitas, tanto do ponto de vista vocal (o registro grave, que ela tem buscado desenvolver nos últimos anos, soava com especial ressonância, com um caráter “andrógino” que contribuía para a caracterização do personagem) quanto do cênico, no qual intensidade nunca foi sinônimo de unidimensionalidade ou ausência de matizes.

Na leitura do aspecto político da encenação de Araújo, bem como de sua urgência para nosso país hoje, novamente faço minhas as palavras de João Luiz Sampaio. Com apenas um acréscimo: ao mesmo tempo que escancarou o indizível atoleiro em que nos enfiamos nos últimos anos, o diretor apontou, também para sua superação. Pois não nos esqueçamos de que o campo da cultura tem sido um dos adversários preferenciais do esquema de poder retratado por ele de forma tão contundente no espetáculo. Só que um país que tem, reconhece e aplaude um artista da grandeza de Antonio Araújo não se deixará encarcerar eternamente pelo ódio às artes, à cultura, ao saber, ao conhecimento e à ciência. Sairemos do atoleiro. E, como Tó fez em tantos espetáculos ao longo de sua trajetória, construiremos a beleza a partir dos escombros.

'I Capuletti e i Montecchi', de Bellini, ainda terá récitas nos dias 29 de abril e 1º de maio; veja mais informações no Roteiro do Site CONCERTO

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Cena de 'Os Capuletos e os Montéquios', de Bellini, no Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]
Cena de 'Os Capuletos e os Montéquios', de Bellini, no Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]

 

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Solidarizo-me com as resenhas e as opiniões de João Luiz Sampaio e de Irineu Franco Perpétuo. Gostaria ainda de ressaltar o belo trabalho da tradução, e muitas vezes adaptação, do libreto. Inteligente e perspicaz, sem perder a ideia original de Felice Romani. A montagem de "Os Capuletos e os Montéquios" do São Pedro tem tudo para se tornar uma das mais instigantes montagens de ópera feitas nos palcos paulistanos.

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