Em um país multiétnico que, desde a constituição de 1988, oficialmente assegura o direito de coexistência digna dos povos indígenas com a sociedade nacional, não é mais aceitável que as artes continuem reforçando antigos estereótipos sem questionamento
O que fazer com uma obra quando seu discurso se torna anacrônico, mas sua beleza é imortal? A montagem revolucionária da ópera O guarani, de Carlos Gomes, estreada em 2023 e reapresentada recentemente no Theatro Municipal de São Paulo, mostrou que é possível não apenas revisitar um clássico respeitando o original e trazendo sua temática à ética contemporânea (como diversas releituras operísticas mundo afora já têm feito), mas também agregar à obra novos sentidos e provocações que a tornam viva, pulsante e necessária nos dias de hoje. Atestam isso tanto o caloroso debate que a montagem gerou na crítica especializada, quanto o absoluto sucesso de público, que lotou todas as récitas, aplaudiu de pé e saiu em verdadeiro estado de encantamento, permanecendo no saguão do teatro em ovação ao grande elenco – em especial, os 25 Guarani que o integram.
Quando Ailton Krenak e Cibele Forjaz receberam a desafiadora tarefa de conceber a releitura da ópera, a diretriz era clara: libreto e música não podiam ser modificados. Mesmo os pontuais cortes na música, que vêm sendo alvo de algumas críticas, já haviam sido feitos pelo maestro Roberto Minczuk, por razões históricas e de duração (o balé, por exemplo, não foi apresentado na própria estreia da obra, no Teatro Alla Scala de Milão, em 1870, e muitas montagens o excluem). A solução foi ressignificar a trama a partir de elementos de dramaturgia, cenário, iluminação, uso de projeções e, principalmente, da própria presença dos indígenas no palco e na equipe de criação. A ideia-gênese, trazida por Krenak, veio de um capítulo do livro A inconstância da alma selvagem, do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Nele, o autor revisita um sermão do Padre Antônio Vieira, que associava a fé europeia à escrita permanente no mármore, e a fé indígena à murta, planta que cresce de maneira fluida e maleável em diversas direções. De maneira análoga, a obra original foi entendida como pedra, imutável, e todas as intervenções adicionais, a flora que a rodeia. E haja flora!
Em um espetáculo multimídia que amplia o sentido de “união das artes” atribuído à ópera, O guarani moderno procurou desconstruir a visão datada e irreal sobre os indígenas do enredo original, que parte somente do viés dos “brancos”, propondo um espaço contemporâneo de encontro entre culturas. Como explicam Cibele Forjaz e a pesquisadora especialista Maria Alice Volpe, no mito romântico da formação identitária nacional, reforçado pela trama, o indígena tem somente duas possibilidades: a integração, pela abdicação de sua cultura (Peri, que renega seus deuses e se deixa batizar na fé cristã para poder se unir a Ceci), ou a morte (os Aimorés, tidos como selvagens por guerrearem contra os portugueses – em autodefesa, diga-se de passagem – e são aniquilados). Em um país multiétnico que, desde a constituição de 1988, oficialmente assegura o direito de coexistência digna dos povos indígenas com a sociedade nacional, com a manutenção de suas culturas, a demarcação de seus territórios e o atendimento diferenciado na saúde e educação, não é mais aceitável que as artes continuem reforçando esses antigos estereótipos sem questionamento. Assim como não é mais aceitável que os indígenas não participem como atores nas arenas que lhes dizem respeito.
Ao longo do século XX, os estudos etnográficos (incluindo a etnomusicologia, de forma mais incipiente) sofreram revisões profundas na sua relação com os povos pesquisados, principalmente a partir de questionamentos pós-modernos sobre a legitimidade na produção de conhecimentos. De meros informantes de pesquisa, os povos originários paulatinamente se tornaram colaboradores e coautores de seus pares acadêmicos, até que passaram a pleitear a ocupação direta dos lugares de autoridade para falar sobre si mesmos e defender seus direitos.
Atualmente, há um forte movimento de indígenas se formando em ciências sociais e outras áreas relacionadas às suas pautas mais urgentes, como educação e saúde, além da participação cada vez maior de lideranças indígenas na política. Há, inclusive, vários programas de apoio à presença indígena em grandes universidades, e universidades voltadas exclusivamente a esse público (não é à toa que o cacique dos Aimorés, na remontagem de O guarani, seja retratado como um antropólogo!).
No esteio desse movimento, a releitura da ópera de Carlos Gomes propôs uma criação coletiva, com a inclusão de indígenas tanto na equipe diretiva (Ailton Krenak, que assina a concepção geral, Denilson Baniwa, artista responsável pelos desenhos projetados no espetáculo) quanto no corpo performático (David Vera Popygua Ju, ator e professor Guarani, como duplo de Peri; Zahỳ Tentehar, multiartista maranhense que foi a primeira indígena a receber o Prêmio Shell de Teatro de melhor atriz, como personagem que permeia o espetáculo como uma espécie de força ancestral da floresta, que acompanha Ceci; além da Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyre’y Kuery, do qual emerge também um coro de mulheres liderado pela atriz e cacique Araju Ara Poty), com barreiras pouco rígidas entre as duas funções, inclusive. Somam-se a isso o elenco principal – que performou lindamente – formado de maneira equilibrada entre cantores negros e brancos, o que materializa uma diretriz importante do Theatro Municipal. O encontro entre culturas proposto no palco, conta Forjaz, começou nos bastidores, com a convivência entre os músicos do Municipal e os Guarani, que ocuparam as coxias com suas crianças e rezas, e com adaptações na forma de trabalho (a preparação do coro Guarani, por exemplo, aconteceu na própria aldeia).
Para além de seus corpos, os Guarani trouxeram para o palco sua visão de mundo, sua forte espiritualidade, que se expressa também em sua música, e sua estratégia histórica de convívio com os colonizadores. Suas intervenções na ópera são cheias de significados e acontecem de maneira orgânica
Ocupando um espaço ao qual sequer tinham acesso como espectadores, os Guarani driblaram os desafios iniciais da convivência entre mundos (como, aliás, sempre fizeram) e, afinal, convidaram o elenco para conhecer a aldeia. O maestro Roberto Minczuk conta que ficou encantado, mas ao mesmo tempo chocado com as condições precárias que encontrou. Longe da figura mítica da ópera original, os Guarani de hoje têm necessidades urgentes, a começar pela demarcação de suas terras: para se ter uma ideia, apenas 2% das terras indígenas demarcadas no país estão fora da Amazônia Legal, e quase 70% das terras Guarani ainda não foram demarcadas.
Também diferentemente das culturas indígenas “intocadas” do século XVII, época de ambientação da trama, os Guarani atuais convivem com a sociedade não indígena há cinco séculos, e o fazem de maneira inteligentemente antropofágica, absorvendo e ressignificando elementos exógenos à sua maneira. Assim, da mesma forma como o violão, de origem ibérica, tornou-se instrumento sui generis da música brasileira, entre os Guarani ele foi adaptado para servir à sua cosmovisão: com cinco cordas ao invés das seis usuais, cada uma representando uma divindade Guarani, sua afinação é diferenciada, e seu uso é combinado à rabeca, também trazida pelos colonizadores, e instrumentos tradicionais como o maracá e o popyguá. Provavelmente, aliás, foram eles os primeiros brasileiros a utilizar esses instrumentos vindos da Europa em um conjunto musical – daí o termo “Orquestra Guarani”, referenciando a formação.
Para além de seus corpos, os Guarani trouxeram para o palco sua visão de mundo, sua forte espiritualidade, que se expressa também em sua música, e sua estratégia histórica de convívio com os colonizadores – que se baseia na resistência à violência pela esquiva mais que pelo enfrentamento direto (isso teria sido, inclusive, o diferencial para sua sobrevivência, já que os povos que escolheram o enfrentamento foram dizimados). Suas intervenções na ópera são cheias de significados e acontecem de maneira orgânica: em dois momentos entreatos e após o final da ópera, eles tocam, cantam e dançam repertórios que simbolizam a resistência e a forma de pensar Guarani, como o Xondaro, referenciando também Xepe Xiaraju (ou Sepé Tiaraju, em grafia mais conhecida), um herói de seu povo na luta contra os invasores europeus. Esses cantos foram cuidadosamente escolhidos pelo coro, juntamente ao Xeramö’i, mestre espiritual que guarda os conhecimentos sagrados da música Guarani, e preparados na Casa de Reza da Aldeia Tekoá Ytu, no Jaraguá. David Vera Popygua Ju, que assumiu o duplo de Peri, conta que, além do preparo técnico como ator, também passou por um preparo espiritual para assumir o papel. Nas palavras de Krenak, “os Guarani trouxeram uma espécie de bendição da palavra, uma potência narrativa, que tem um quê de magia. Qual arte pode existir sem magia?”.
Entendendo o batismo como uma espécie de feitiço dos brancos, os pajés decidiram desbatizar seus parentes. Na ópera, o “feitiço” de Peri é poeticamente retirado com uma explosão de luzes. Enquadrado pela música sublime de Carlos Gomes, o momento é um ponto alto da montagem e leva a plateia a um estado de êxtase.
Outra intervenção Guarani, coordenada por Forjaz, criou um momento transcendental, cujo simbolismo sintetiza toda a proposta da montagem: durante a cena de batismo de Peri, que no original renega seus deuses para poder se unir a Ceci, há uma suspensão da ópera para que os Guarani cantem uma música ritual altamente espiritual, simbolizando que eles não precisariam abrir mão de seus deuses para coexistir com os não indígenas. A remontagem de 2025 retrabalhou o trecho para ir além: nela, Peri é simbolicamente desbatizado – um conceito trazido por Krenak a partir de um episódio histórico de messianismo indígena. No século XVII, os tupis do sertão nordestino iniciaram um movimento de revolta messiânica, atraindo multidões de indígenas que estavam arregimentados nos aldeamentos jesuíticos. Entendendo o batismo como uma espécie de feitiço dos brancos, que provocava um estado de apatia, os pajés decidiram desbatizar seus parentes. Na ópera, o “feitiço” de Peri é poeticamente retirado com uma explosão de luzes, enquanto um símbolo do Cruzeiro do Sul gira até se transformar em um arco e flecha. Enquadrado pela música sublime de Carlos Gomes, o momento é um ponto alto da montagem e leva a plateia a um estado de êxtase. Nas palavras de Krenak, “muita gente fica recompensada quando vê o povo indígena se pondo no lugar da narrativa da ópera, e não como sujeito manipulado por essa narrativa.”
Uma última intervenção performática é protagonizada por Zahỳ Tentehar, em uma cena (criada por ela) que mistura canto e reza tradicional a uma dança com facões em meio ao coro Aimoré, simbolizando formas de resistência indígena mais incisivas. O coro Aimoré do terceiro ato, cuja música por si só já é sublime (e foi lindamente interpretada pelo Coro Lírico Municipal), foi realçado na montagem pelos elementos cênicos, em especial cenário, figurino e projeções, que elevaram simbolicamente os indígenas à condição de uma floresta inteira, lançando uma chuva de flechas que, poética e literalmente, atravessa o teto do teatro e derruba os colonizadores ao chão.
Perpassam todo o espetáculo os desenhos encantados do artista Denilson Baniwa, cujos animais, plantas e símbolos espirituais se projetam no palco e fora dele, criando novas camadas de significados sobre as cenas e envolvendo toda a plateia no próprio espetáculo. Paralelamente a tudo isso, ao longo da ópera foram exibidos cartazes de caráter mais ativista, com dizeres sobre a demarcação de terras e o respeito a direitos dos indígenas – alvos de críticas, essas intervenções seriam de fato dispensáveis se não fossem necessárias: Krenak associa diretamente o alcance (inclusive internacional) da montagem, em 2023, e os protestos políticos no saguão do teatro após os espetáculos, à retomada da demarcação da Terra Indígena Guarani do Jaraguá, que havia sido anulada. “Quando os Guarani fecharam o Rodoanel [para exigir a retomada da demarcação, que aconteceu em 2024]”, conta, “houve adesão da periferia. De maneira análoga, quando os parentes ocuparam a Secretaria de Educação de Belém do Pará para protestar contra o projeto de educação por telecurso nas aldeias, os demais povos da floresta – ribeirinhos, quilombolas – também despertaram, e o movimento chegou ao ponto de assumir a agenda da COP-30, que será realizada na Amazônia, com protagonismo.”
O que Ailton Krenak (e nós) esperamos é que essa releitura histórica possa ser tomada como referência em montagens futuras de “O Guarani”, para que “não repitam uma montagem presa ao colonialismo e ao pacto do racismo estrutural, no qual uma pessoa indígena é levada a contar uma história que não é sua”. Da mesma maneira, também “desejamos que a releitura inspire outros criadores indígenas a questionarem esses registros coloniais para mudá-los”. Como sociedade, espero que participemos desse movimento não apenas como espectadores, mas possamos nos envolver com as causas indígenas – nos encantando, de quebra, com a potência artística e simbólica dessas novas criações interculturais.
Júlia Tygel é compositora, pianista e pesquisadora. Doutora em Musicologia pela USP com estágio na City University of New York, é Mestre em Etnomusicologia pela Unicamp, tendo trabalhado junto à compositora Kilza Setti no Arquivo Musical Timbira junto a povos indígenas no Maranhão e Tocantins.
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Comentários
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Interessante notar como é…
Interessante notar como é difícil manter a coerência ideológica decolonial. Peri, personagem romanesco, é cenicamente desbatizado, mas Sepé Tiaraju, personagem histórico, é exaltado pelos idealizadores do espetáculo. Sepé Tiaraju foi cristão de terceira geração, alferes e corregedor que morreu martirizado em defesa da Missão jesuítica de São Gabriel (contra espanhóis e também portugueses; há também registro histórico de embates de milícias missioneiras contra grupos indígenas não aldeados). Está em curso o processo de beatificação de Sepé Tiaraju pela Igreja Católica. Um segundo comentário sobre a montagem: as intervenções mudaram bastante do ano passado para o presente ano, dando a impressão que foram pensadas mais ideologicamente (nem tão bem, pelo que foi observado acima) do que formalmente, por se mostrarem mais contingentes que necessárias.