A razão do que fazemos

por João Luiz Sampaio 01/09/2019

Em entrevista, maestro Kent Nagano fala de concertos no Brasil, relembra momentos de sua trajetória e comenta planos para o futuro

Entrevistar Kent Nagano pode ser uma experiência angustiante. Não porque, como tantos artistas, o maestro não goste de falar daquilo que faz. É exatamente o contrário. Cada resposta revela-se uma longa reflexão que extravasa a pergunta inicial. Então, quando se tem pouco tempo, o que fazer? Deixá-lo falar ou interrompê-lo, para que mais perguntas sejam feitas? No fim das contas, o fato é que nem seria possível – o raciocínio possui um fio, um arco amplo, em que as ideias vão se sucedendo, como aliás acontece, a gente percebe, em suas próprias interpretações, responsáveis por fazer dele um dos grandes maestros de sua geração.

Nagano vem ao Brasil para, no comecinho de outubro, nos dias 1º e 2, em São Paulo, e no dia 3, no Rio de Janeiro, reger a Orquestra Sinfônica de Montreal, da qual é diretor desde 2006, pelas temporadas da Cultura Artística e da Dell’Arte, respectivamente. É um bom lugar para começar. E pergunto o motivo pelo qual escolheu para a turnê obras de Mozart, Brahms, Mahler e Bartók. São compositores que, colocados assim, lado a lado, de alguma maneira formam uma sequência sobre como o repertório sinfônico se desenvolveu.

“Você tem razão”, ele diz. “Mas o objetivo na verdade foi outro. Uma turnê é um momento de mostrar aquilo que você é. E, no caso da Sinfônica de Montreal, isso significa entender o lugar de onde ela vem, o papel que desempenha na sociedade em que está inserida. E Quebec [província canadense da qual Montreal é a principal cidade] é um lugar sui generis.”

Nagano chegou à direção do grupo quando sua carreira desenvolvia-se principalmente na Europa, onde dirigia a Ópera de Hamburgo e a Deutsches Symphonie-Orchester Berlin. “Quando desembarquei em Quebec, levei um susto, um susto interessante. Era como se estivesse em solo europeu. A influência europeia era muito viva, e alimentada, sem rupturas, sem rejeições. Ao mesmo tempo, havia um desejo de modernidade característico do novo mundo.”

Isso tudo, o maestro explica, sugeria um consenso de que “a experiência sinfônica precisava ser a mais rica possível, com um mergulho ainda mais profundo no grande repertório”. “No entanto, houve grandes transformações nesse período. Gradualmente, a orquestra tornou-se mais jovem, em um processo delicado e que nos permitiu também colocar uma pergunta importante. O que uma orquestra do século XXI deve ser? A resposta, para nós, esteve e está ligada à tentativa de não ser um grupo de apenas parte da sociedade, mas de toda ela. E isso leva ao questionamento a respeito de onde está o espaço para a música sinfônica dentro da vida cultural. E as respostas têm surgido aos poucos, em outro momento com a ampliação do repertório, com a abertura para a música de câmara, enfim, com a tentativa de ser, no palco musical, o que Quebec é hoje. Não há respostas fáceis nesse processo, mas o teatro tem estado sempre lotado, a procura por tudo o que fazemos é cada vez maior. É uma forma, acreditamos, de a cidade nos dar um retorno sobre o que estamos fazendo.”

Fim do mundo

Kent Nagano nasceu na cidade de Morro Bay, na costa da Califórnia, nos Estados Unidos. Em outra conversa que tivemos, em 2013, quando ele esteve no Brasil pela primeira vez com a Sinfônica de Montreal, ele brincara dizendo que sua mulher, a pianista Mari Kodama (com quem, aliás, gravou concertos de Beethoven) definia o local como “fim do mundo”, porque, “quando você chega à Califórnia, se continuar adiante, você começa a voltar”. 

Morro Bay tem hoje pouco mais de 10 mil habitantes. E Nagano relembra seus anos na cidade com detalhes. Não foi uma infância comum. Filho de acadêmicos prestigiados – seu pai era engenheiro e sua mãe, microbiologista –, ele acabou indo viver na fazenda da família, que os pais passaram a comandar quando o avô do maestro ficou doente. Foi mais um contraste em um período marcado por eles. “Eu me lembro claramente, por exemplo, da oposição entre o oceano, que se abria para o infinito, e a barreira formada pelas montanhas.”

A música entrou em sua vida quando ele tinha 6 anos de idade – e o que aconteceu a partir dali é um testemunho da importância do ensino musical nas escolas. Seu professor era um músico japonês que havia chegados aos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Começou a dar aulas na escola de Morro Bay e, com o tempo, à medida em que o governo passou a investir em educação de maneira mais intensiva, lembra Nagano, obteve recursos para criar um conservatório, duas orquestras, três bandas, “envolvendo toda a cidade nas atividades musicais e fazendo com que os jovens quisessem participar daquilo”. O treinamento recebido de Korisheli era inspirado nos modelos europeus; além do instrumento, havia teoria musical, discussões sobre estética e filosofia, “não importava quão novos nós fossemos”.

Na Universidade da Califórnia, Nagano estudou sociologia e, pouco depois, na Universidade de São Francisco, frequentou o curso de música, onde teve como professores os compositores Grosvenor Cooper e Roger Nixon. “Meu treino formal era, portanto, realizado com novos autores. Talvez por isso os dois universos tenham convivido desde cedo em minha mente e eu tenha passado a entendê-los como parte de um mesmo processo”, disse-me em 2013. “Sem a música nova, não há Beethoven, é simples. Se a criação contemporânea não é estimulada, as obras do passado podem acabar como parte de uma tradição sem presente e sem futuro.”

Kent Nagano [Divulgação / Anne Zeuner]
Kent Nagano [Divulgação / Anne Zeuner]

Música e ideias

Não por acaso, um de seus primeiros trabalhos na Europa foi como assistente do maestro Seiji Ozawa e do compositor Olivier Messiaen na preparação da estreia da ópera São Francisco de Assis, em 1983. Anos depois, ele também gravaria a obra durante sua gestão à frente da Hallé Orchestra, com um elenco encabeçado pelo baixo-barítono Jose van Dam. E esse é apenas um dos muitos exemplos de atenção às músicas dos séculos XX e XXI em sua discografia.

Com a companhia da Ópera de Lyon, por exemplo, ele gravou as óperas O amor das três laranjas, de Prokofiev, Doktor Faustus, de Busoni, e A morte de Klinghoffer, de John Adams; na Ópera de Paris, destaca-se Cardillac, de Paul Hindemith; e, na Alemanha, com a Deutsches Symphonie-Orchester Berlin, há muito Bernstein, uma série dedicada a Schönberg, Zemlinsky e Schreker (uma produção eletrizante da ópera Os escolhidos). A lista tem ainda Unsuk Chin, Jörg Widmann, Wolfgang Rihm – e convive com alguns marcos do grande repertório, na ópera (sua Bohème é uma joia escondida) e na música sinfônica.

Na discografia de Nagano, no entanto, Beethoven é um ponto de parada fundamental. Dele, gravou os concertos para piano mais de uma vez (com Kodama e outros artistas, como Radu Lupu) e suas sinfonias, com diversas orquestras – principalmente em Montreal. Um crítico presente à gravação das Sinfonias nº 2 e nº 4 definiu de maneira precisa o que viu no palco – e que se pode ouvir no CD: “Orquestra e maestro atingiram tamanha comunhão que estão confortáveis o suficiente para ousar em alguns momentos na interpretação, atingindo um nível de performance empolgante, sem abrir mão de um controle e de uma transparência incríveis”.

Contudo, a proposta da série Beethoven de Montreal não está apenas na interpretação em si, mas na forma em que as obras são combinadas. O disco com a segunda e a quarta sinfonias foi batizado de “A poesia da liberdade”; a primeira e a sétima ganharam o título “Partidas e utopias”; a nona, “A miséria humana – o amor humano”; a terceira e As criaturas de Prometeu, “Deuses, heróis & homens”; a sexta, a oitava e a Grande fuga, “O sopro do tempo”; e a quinta, mais a Abertura Egmont, encerrou o ciclo com o título “Ideais da Revolução Francesa”. 

As associações são bastante diretas, evocando o imaginário em torno das obras de Beethoven. Em que medida as ideias interferem na interpretação? Não parece ser essa a pergunta, mas, sim, como essas obras podem ser compreendidas de acordo com os temas com que lidavam, trazendo para primeiro plano o que normalmente é assunto para nota de programa.

“A pergunta é: por que as pessoas vão a uma sala de concertos? Por que elas querem ouvir essa música?”, coloca Nagano. “Ninguém é obrigado a ouvir música clássica, mas as pessoas fazem isso. E de maneira bastante particular. Se eu vejo um filme, por mais que goste dele, talvez consiga vê-lo mais uma ou duas vezes. Com uma sinfonia, porém, nossa relação é diferente. Eu a ouço dezenas de vezes – e estou pronto para mais. Para mim, as pessoas estão sempre buscando algo, querendo descobrir algo. Uma sinfonia talvez seja símbolo da perfeição humana, daquilo que podemos atingir. E, se entendemos isso, sempre haverá algo novo, para nós que interpretamos e para qualquer um que esteja interessado em ouvir essa música.”

“Ninguém é obrigado a ouvir música clássica, mas as pessoas fazem isso.Uma sinfonia talvez seja símbolo da perfeição humana, daquilo que podemos atingir”

Ópera

No ano passado, Nagano gravou, com a Sinfônica de Montreal, a ópera A Quiet Place, de Leonard Bernstein. O ponto de partida é característico da temática urbana que o compositor abordou em suas obras teatrais. Dinah morre em um acidente de carro, que dirigia embriagada. Seu marido Sam avisa os filhos, com quem não mantinha contato, e eles  – um rapaz que havia seguido para o Canadá para fugir da obrigação de se alistar no exército durante a Guerra do Vietnã e é amante do marido de sua irmã, Dede – reaparecem para o funeral.

Nagano foi aluno de regência de Bernstein durante um período. “Tive essa experiência marcante por sete anos. Mas, para nós, alunos, a personalidade de Lenny era um problema, tínhamos e temos com ela uma relação complicada, pois ele era único, era tão carismático, tão talentoso em tudo o que fazia…” Ele faz uma pausa. “No entanto, o tempo muda algumas perspectivas. Minha filha é uma jovem pianista. E a personalidade de Bernstein não significa absolutamente nada para ela. Ela já assistiu a seus DVDs, ela o ama. Ainda assim, o que interessa a ela e o autor de obras como The Age of Anxiety, a Sinfonia Jeremiah. Para ela e seus colegas, o Bernstein maestro importa muito menos que o Bernstein compositor, representante e símbolo de uma ideia de cultura norte-americana. Um de meus antecessores na Bayerische Staatsoper, em Munique, Peter Winter, foi contemporâneo de Mozart e Beethoven. Era uma figura carismática, prolífica, extremamente popular, suas obras eram muito tocadas. Quem se lembra dele? Estou cada vez mais certo de que, com o tempo, ninguém estará preocupado com o maestro que Lenny foi, só tentarão entender o legado que ele deixou como compositor.”

Nagano esteve à frente da Bayerische Staatsoper entre 2006 e 2013; comandou a Deutsches Symphonie-Orchester, em Berlim, entre 2000 e 2006 (e hoje é regente de honra do grupo); desde 2013, é o principal regente convidado da Sinfônica de Gotemburgo; e, atualmente, além do posto em Montreal, é diretor-geral de música na Ópera Estatal de Hamburgo.

A presença em teatros de ópera importantes fez dele especialista no assunto, ainda que durante muito tempo ele tenha ficado distante deste repertório. Foi Plácido Domingo, ele conta, que o convenceu, em 2001, a assumir o posto de regente na Ópera de Los Angeles, inaugurando uma relação constante com a música lírica. O tenor o chamou, na ocasião, na expectativa de que ele comandasse a companhia em duas óperas de Wagner: Parsifal e Lohengrin. E as críticas foram superlativas. “Nagano, regendo Wagner, fez da orquestra da Ópera um dos principais grupos do país. Sob sua regência, a orquestra tocou com tal fluência e intensidade que deu à obra de Wagner uma coerência dramática sem deixar de explorar todo o alcance da obra”, anotou a revista Opera News após as apresentações de Parsifal.

Anel

Na ópera, o repertório de Nagano – ao menos aquele a que dedicou gravações – também não segue padrões estabelecidos. Além de Bohème, de Puccini, e de Werther, de Massenet, há pouco do chamado grande repertório. Mas Wagner é uma referência para o futuro – com um olhar diferente. Em 2017, ele lançou The Wagner Project com o Concerto Köln. O objetivo é interpretar a tetralogia O anel do nibelungo em uma visão historicamente informada, ou “de época”. Para tanto, a orquestra e o maestro firmaram uma parceria com a Universidade de Colônia, e a apresentação do ciclo, em 2021, será o resultado de anos de pesquisas, master classes, concertos, simpósios, palestras, debates e lançamentos de livros.

O que podemos esperar de um Wagner historicamente informado? “Não sei muito bem, acho que os músicos também não sabem: e é exatamente essa a questão. Temos sentido animação, irritação, entusiasmo, tudo ao mesmo tempo”, diz, esboçando um leve riso. “Para mim, até agora, posso dizer que tem sido a oportunidade de pensar em minha própria relação com a obra do compositor. Em Hamburgo, Wagner é naturalmente parte do repertório central, básico, da ópera estatal. Mas o que isso significa – quer dizer, quanto da nossa percepção a respeito de sua obra está de fato viva? Foi então que surgiu a ideia de uma pesquisa de cinco anos sobre a estética wagneriana, seu conceito de som, de fraseado, de colorido”, explica. Outro aspecto tem a ver com a voz. “O que é a voz wagneriana não apenas em termos de volume, mas também de clareza, de dicção? São coisas assim que estamos perguntando a musicólogos, a especialistas. E, no palco, começamos um trabalho de interpretação do século XIX que se inicia em Beethoven, segue por Schumann, Schubert e deságua em Berlioz até chegar a Wagner. Tudo tem sido feito com calma, não há pressa de realizarmos o Anel, e esperamos e acreditamos que quando lá estivermos tudo irá funcionar de outra maneira.” Outro pequeno riso. “Mas estamos certos de uma coisa: voltar ao começo é sempre importante, entender o que está por trás das coisas, o objetivo inicial que levou à criação de uma obra como essa. E a razão do que fazemos.”

E isso, acreditem, foi a resposta a apenas uma pergunta. 


AGENDA
Orquestra Sinfônica de Montreal
Kent Nagano
– regente / Veronika Eberle – violino
Dias 1º e 2 de outubro, Sala São Paulo
Dia 3 de outubro, Theatro Municipal do Rio de Janeiro