Fé na natureza

por João Marcos Coelho 01/11/2019

Com o maestro Heinz Holliger, a Osesp apresenta neste mês a monumental Dos cânions às estrelas, de Olivier Messiaen

Assistir a um dos três concertos que a Osesp realiza neste mês, sob a regência de Heinz Holliger, é fundamental para quem deseja entender a relação do compositor contemporâneo com o mundo que nos rodeia. Mais: Dos cânions às estrelas nos transporta, por uma hora e meia, à música da natureza. Esta foi, para seu compositor Olivier Messiaen (1908-92), a matriz de sua maravilhosamente original carreira como criador musical e decisivo professor de gerações de compositores que tiveram o privilégio de acompanhar suas aulas no Conservatório de Paris por décadas. Os mesmos que, como o brasileiro Almeida Prado, não só estudaram com ele, mas também lhe assistiam improvisando ao órgão da Igreja da Trinité parisiense, função que manteve por muitas décadas. Era como se natureza e fé se fundissem num só gesto criador.

Provavelmente nenhum outro compositor encarnou de modo tão intrínseco uma postura militante calcada na paixão pela natureza, na prática diária da fé e numa admirável sinestesia entre sons e cores. Para compreender os pressupostos da obra a que teremos o privilégio de assistir na Sala São Paulo, é preciso levar em conta sua profissão de fé artística, tal como ele a colocou no papel em 1978, num texto emocionante e que reproduzo:

“As pesquisas científicas, as provas matemáticas, as experiências biológicas acumuladas não nos salvaram da incerteza. Pelo contrário, aumentaram nossa ignorância, mostrando sempre novas realidades por baixo do que acreditávamos ser a realidade. A única realidade que existe é a de uma outra ordem: situa-se no domínio da fé. É pelo encontro com um Outro que podemos compreendê-la. Mas é preciso passar pela Morte e pela Ressurreição, o que supõe um salto para fora do tempo. Muito estranhamente a música é capaz de nos preparar para isso, como imagem, como reflexo, como símbolo. Com efeito, a música é um perpétuo diálogo entre o espaço e o tempo, entre o som e a cor; o espaço é um complexo de tempos superpostos, os complexos de sons existem simultaneamente como complexos de cores. O músico – que pensa, vê, ouve e fala por meio desses conceitos fundamentais – pode, em certa medida, aproximar-se do Além. E, como diz Santo Tomás, a música nos conduz a Deus, ‘por lacuna de verdade’, até o dia em que Ele próprio venha a nos deslumbrar ‘por excesso de verdade’. Tal pode ser o sentido-significação e também o sentido-direção da música.”

Olivier Messiaen [Reprodução]
Olivier Messiaen [Reprodução]

A encomenda de Dos cânions às estrelas nasceu em 1971. A mecenas Alice Tully pagou-lhe o equivalente a 285 mil euros (Philippe Olivier conta isso em detalhes no ótimo artigo publicado pela Revista Osesp no início do ano). Messiaen lhe fez um pedido: queria inspirar-se numa paisagem montanhosa norte-americana, em vez de nos arranha-céus de Manhattan. No ano seguinte, programou-se uma visita do compositor a Utah, num período favorável aos cantos de pássaros. Esclarecimento: ao lado de sua fé, os pássaros foram outra de suas paixões da vida inteira, a ponto de, em carta sobre sua obra-prima Catálogo dos pássaros, recomendar ao organizador da estreia: “Não coloque nenhuma biografia e nenhuma consideração humana em meu texto analítico: desejo desaparecer diante dos pássaros”. E, no texto sobre a obra, em 1953, explicou por quê: “Nas horas sombrias, quando minha inutilidade me é brutalmente revelada […] o que fazer, senão reencontrar Seu [Deus] rosto verdadeiro, esquecido em algum lugar na floresta, nos campos, na montanha, à beira do mar, no meio dos pássaros?”.

Voltemos a essa obra monumental, apesar de contar apenas com 13 cordas, 14 madeiras, 8 metais e 5 percussionistas encarregando-se de uma parafernália de instrumentos, incluindo a máquina de vento tão popular no século XVIII, e o geofone, inventado por Messiaen para reproduzir movimentos de terra, na expressão do compositor. 

Estrutura-se em doze movimentos, repartidos em três partes: a primeira integra os movimentos de 1 a 5; a segunda, os movimentos 6 e 7; e a terceira, de 8 a 12. Destacam-se alguns instrumentos, como o glockenspiel e a xilorimba, uma espécie de xilomarimba. Dois, entretanto, assumem maior protagonismo. O piano ganha dois movimentos solo: o quarto, “A cosifa de Heuglin”, ave migratória, e o nono, “Le moqueur polyglote”. E a trompa brilha só no sexto, “Chamado interestelar”, baseado em texto do Livro de Jó, da Bíblia, especificamente neste versículo: “Ó, terra, não cubras o meu sangue e que meu grito se eleve sem obstáculo”. Detalhe: Messiaen proibiu que a peça fosse executada isoladamente.

Os famosos cânions e as estrelas do título remetem respectivamente à terra e ao céu. Mas há um dado importante, fundamental. Como anotou jocosamente o jornalista e crítico musical norte-americano Alex Ross, depois de as vanguardas musicais do século XX terem feito da dissonância a regra da música contemporânea, ultimamente as coisas têm mudaram bastante. “Nenhum compositor recuperou tríades mais descaradamente que Olivier Messiaen, o devoto mestre francês católico.” Verdade verdadeira. Mas e daí? Não há nenhum problema em escrever consonâncias, desde que haja, como aqui, uma refinada e fabulosa escrita instrumental. Nesta obra, há, sim, fulgurantes acordes perfeitos, tonitroantes, belíssimos. Só que não são tão reconfortantes quanto os ouvidos tradicionais desejariam, porque estão emoldurados, envolvidos, entrelaçados numa profusão instrumental que quase os encobre – provocada pelos cantos dos pássaros, que ignoram solenemente a música dita “bem” temperada. O grand finale, no último movimento, “O parque Sião e a cidade celeste”, entoa um monumental acorde perfeito em lá maior. Mas preste atenção no 11º movimento, que leva o nome de quatro pássaros: “Omao, Leiothrix, Elepaio e Shama”. Outro pesquisador e ex-aluno de Messiaen, Alain Louvier, enxerga aí “verdadeiros contrapontos, misturados com efeitos que evocam Villa-Lobos e Penderecki”. A conferir. 


PARA LER
• “Pássaros e natureza em estado bruto: a América segundo Olivier Messiaen”, artigo de Philippe Olivier, Revista Osesp, 2019
Messiaen et le concert de la nature, de Alain Louvier 
(Cité de la Musique, 2012)
Olivier Messiaen, de Peter Hill e Nigel Simeone (Fayard, 2008)

AGENDA
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
Heinz Holliger
– regente
Dias 7, 8 e 9, Sala São Paulo